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No cenário atual do Judiciário, a pergunta que se impõe já não é mais se devemos optar pela técnica ou pela sensibilidade. A questão é mais profunda, mais inquietante: como integrar ambas sem que uma silencie a outra? Diante da ascensão das tecnologias preditivas e da inteligência artificial, o Direito se vê diante do espelho da sua própria identidade — e o reflexo nem sempre agrada.
A máquina julga com base em padrões. O juiz, com base na dimensão humana.
O episódio ocorrido em São Paulo — a recusa de adiamento de audiência a um advogado que havia perdido sua estagiária — não é um desvio, mas um sintoma. Juridicamente, a decisão da magistrada é defensável: não há previsão legal para luto de estagiária. Mas é exatamente aí que reside o problema. O Direito não pode, em nome do rigor, esquecer a humanidade. O gesto de manter a audiência, naquele contexto, foi menos jurídico e mais desumano.
Como ensinava Pontes de Miranda, o Direito não é um fim em si mesmo. A norma deve servir à vida e não ser seu carcereiro. A letra da lei deve ser interpretada conforme os princípios que a animam — e não sufocada por eles. Quando a regra é aplicada sem margem para o contexto, ela se desfigura em tirania formal.
A formação jurídica não pode continuar sendo uma fábrica de operadores.
Hoje, há uma ênfase exagerada em provas, códigos e repetição. Forma-se o bacharel como se fosse um autômato normativo. O resultado? Magistrados e operadores que se refugiam no conforto das normas, mas hesitam diante do inesperado, do ético, do humano.
É preciso reconectar o Direito às humanidades. Ensinar ética com casos reais, estudar filosofia do direito com os dilemas da vida, introduzir debates sobre justiça restaurativa e empatia institucional. Não se trata de romantismo, mas de sobrevivência institucional.
A inteligência artificial não é o inimigo — é um instrumento.
A automação já é parte do Judiciário: ajuda em triagens, cálculos, identificação de precedentes. Mas ela só pode auxiliar. Nunca decidir. Porque julgar é, em última instância, um exercício de alteridade. E isso nenhum algoritmo é capaz de replicar. Quando um juiz decide adiar uma audiência por compaixão, não age contra a lei, mas em seu espírito mais profundo.
O que está em jogo é a legitimidade do Judiciário.
As regras processuais não precisam ser abolidas. Precisam ser vistas como meios — jamais como fins. Tribunais que se abrem à equidade, que aplicam a proporcionalidade com coragem e que interpretam a boa-fé objetiva como uma cláusula de abertura ao real estão, de fato, promovendo uma nova visão do formalismo: rigoroso, sim, mas jamais cego.
Em tempos de algoritmos, a única máquina insubstituível ainda é o coração.
A Justiça que a sociedade espera não é a que se esconde atrás do código, mas a que se apresenta, firme e sensível, diante da dor do outro. Precisamos de juízes que saibam dizer "não" ao automatismo e "sim" à escuta. Juízes que compreendam que compaixão também pode ser uma forma de justiça.
Porque, ao final, o verdadeiro Direito é aquele que transforma normas em pontes. Pontes que ligam o técnico ao sensível, o rigor ao respeito, o processo ao humano.
E isso, por enquanto, só um ser humano é capaz de fazer.
Prof. Jorge Tardin é advogado — Tesoureiro da OAB/Búzios
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