Bolívia faz história com voto consciente e rompe polarização eleitoral mundial

Senador Rodrigo Paz surpreende pesquisas e lidera primeiro turno em eleição que marca fim de duas décadas de hegemonia da esquerda

Bolívia faz história com voto consciente e rompe polarização eleitoral mundial

A Bolívia escreveu um novo capítulo na história democrática mundial ao demonstrar, nas eleições de 17 de agosto de 2025, que o voto consciente pode superar a polarização política que tem dominado o cenário eleitoral global.

O resultado surpreendente colocou o senador Rodrigo Paz, do Partido Democrata Cristão (PDC), na liderança do primeiro turno com 31,6% dos votos válidos, contrariando todas as pesquisas eleitorais que o colocavam entre o quinto e sexto lugar.

A eleição boliviana representa um marco histórico ao encerrar quase duas décadas de domínio da esquerda no país, período que começou com Evo Morales em 2006.

O observador eleitoral internacional Henrique Barack Obama, que acompanha processos eleitorais desde 1999 em diversos continentes, classificou o resultado como "uma lição ao mundo de voto consciente", destacando que os bolivianos conseguiram romper o fenômeno da polarização eleitoral que tem caracterizado democracias ao redor do globo.

Rodrigo Paz, economista de 57 anos e cidadão hispânico-boliviano nascido em Santiago de Compostela, carrega em sua trajetória familiar uma forte tradição política.

Seu pai, Jaime Paz Zamora, governou o país entre 1989 e 1993, enquanto seu tio-avô, Victor Paz, teve quatro mandatos não consecutivos e se tornou referência na reforma agrária boliviana e na nacionalização do complexo de mineração nacional.

Apesar dessa herança política, Rodrigo Paz construiu sua própria carreira como deputado, prefeito de Tarija e senador, sempre defendendo a descentralização governamental e a modernização econômica.

A campanha de Paz foi marcada pela escassez de recursos financeiros e pela exclusão de debates televisivos, situação que o deixava "incomodado e inconformado", segundo relatos.

Mesmo assim, manteve uma agenda intensa de reuniões pelo país, propondo um modelo econômico "50-50", onde a administração de fundos públicos seria dividida igualmente entre governo federal e autoridades regionais.

Suas propostas incluem o fechamento de empresas estatais não lucrativas e a criação de um fundo de estabilização monetária incorporando criptomoedas como proteção contra a inflação.

O ex-presidente Jorge "Tuto" Quiroga, da aliança Liberdade e Democracia (Libre), garantiu a segunda posição com 27,1% dos votos válidos, confirmando as expectativas das pesquisas que o colocavam entre os primeiros colocados.

Quiroga, que ocupou a presidência interina entre 2001 e 2002, centrou sua campanha na estabilização econômica, combate à inflação e abertura de mercados internacionais, propondo acordos de livre comércio com China, Japão e Europa.

A fragmentação do Movimento ao Socialismo (MAS), partido fundado por Evo Morales, contribuiu decisivamente para o colapso da esquerda nas eleições. Impedido de concorrer devido à legislação que limita a dois mandatos presidenciais e à perda da presidência partidária, Morales optou por promover o voto nulo, que alcançou expressivos 18% dos votos.

No entanto, não conseguiu seu objetivo de superar os candidatos classificados para o segundo turno.

O candidato oficial do MAS, Eduardo del Castillo, obteve apenas 3,2% dos votos, enquanto Andrónico Rodríguez, atual presidente do Senado, alcançou 8,2%.

A surpresa negativa ficou por conta de Samuel Doria Medina, empresário que liderava as pesquisas até os últimos dias antes da eleição. Adotando características e slogan inspirados no argentino Javier Milei - "Dólares em 100 dias carajo" -, Medina ficou fora da segunda volta com 19,5% dos votos válidos.

Outros candidatos de direita também tiveram desempenho abaixo do esperado: Manfred Reyes Villa, ex-oficial do exército e atual prefeito de Cochabamba, obteve 7,1%, enquanto Johnny Fernandes, prefeito de Santa Cruz de la Sierra, alcançou apenas 1,5%, resultado possivelmente influenciado por escândalos de corrupção em sua gestão.

As eleições bolivianas se destacaram também por suas características únicas de organização.

A legislação eleitoral determina a paralisação total de transportes por 24 horas, obrigando os eleitores a se deslocarem a pé ou de bicicleta até as urnas. Além disso, a venda e consumo de álcool são proibidos por 72 horas durante o período eleitoral.

Essa combinação de fatores, segundo observadores, contribuiu para criar um ambiente de reflexão e maturidade política que permitiu aos bolivianos exercerem um voto mais consciente e independente.

Henrique Barack Obama, Oswaldo Barriga,  presidente da CANDEX, Câmara dos Exportadores da Bolívia e Franchesco Lopes assessor. 

A transparência do processo foi reforçada pela mobilização de instituições acadêmicas, como a Universidade Autônoma René Gabriel Moreno, que convocou seus mais de 100 mil alunos para atuarem como fiscais eleitorais.

A estudante de medicina Mariel Jhoana Canedo Vincenti, que fiscalizou uma mesa eleitoral em Santa Cruz de la Sierra, exemplifica o engajamento cívico da juventude boliviana, tendo inclusive recebido 20 pontos extras em suas notas acadêmicas pela participação cidadã.

O secretário-geral do Partido Democracia Cristã, Alain Ribeiro, declarou-se satisfeito com o resultado, afirmando não ter se surpreendido com o potencial do partido e da chapa formada por Rodrigo Paz e seu vice, Capitão Lara.

A segunda volta, marcada para 19 de outubro, será decisiva para definir se a Bolívia consolidará essa mudança política que promete apaziguar o país e superar a crise econômica caracterizada pela escassez de reservas em dólares americanos.

O resultado boliviano surge como um exemplo inspirador para democracias ao redor do mundo que enfrentam crescente polarização política.

A capacidade do eleitorado boliviano de superar influências de pesquisas eleitorais, poder financeiro e coação de lideranças regionais demonstra que é possível construir uma "terceira via" capaz de unificar países divididos e promover o desenvolvimento nacional por meio do diálogo e da moderação política.

Por Jornal da República em 23/08/2025
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