Conheça os projetos que transformaram o Rio em um estado onde a Mata Atlântica volta a crescer

O monitoramento do Mapbiomas identificou que o Rio foi o único estado do país que ampliou suas áreas verdes nos últimos 39 anos

Conheça os projetos que transformaram o Rio em um estado onde a Mata Atlântica volta a crescer

O que antes era um tapete verde virou solo exposto — a colonização e o desmatamento aniquilaram grande parte da Mata Atlântica no Brasil. Hoje, restam apenas 12,4% do bioma original: cerca de 160 mil quilômetros quadrados dos mais de 1,3 milhão que existiam antes da chegada dos portugueses. No Rio de Janeiro, no entanto, o cenário passa a mudar: o estado é o único do país a registrar ganho de áreas naturais em zonas urbanas. Este avanço é resultado do esforço de ambientalistas, pesquisadores e projetos comunitários que tentam replantar o que o passado levou.

Resistindo à devastação, a Mata Atlântica mantém uma característica essencial: a capacidade de se regenerar. Quando o solo não é completamente degradado, a floresta retorna, mesmo que aos poucos.

Segundo a bióloga Aliny Pires, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e uma das coordenadoras do relatório da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (Bpbes), o desmatamento está nas origens do país.

“O processo de colonização do país teve uma centralidade muito forte no território fluminense, o que levou a uma modificação intensa da paisagem natural. Historicamente, o estado chegou a um nível extremo de degradação ambiental. Podemos dizer que chegou ‘ao fundo do poço’”, conta.

Mosaico em expansão requer cuidados

Hoje, 1,33 milhão de hectares do território fluminense ainda são cobertos por Mata Atlântica, conforme dados do MapBiomas, o equivalente a 30% da área total do estado. Os números mostram que o estado foi o único, entre os anos de 1985 e 2023, a ampliar suas áreas naturais nos setores urbanos.

Mais de 70% dessas matas são florestas secundárias, que voltaram a crescer após o abandono de atividades agrícolas e pastoris. São áreas que, vistas do alto, parecem pequenas manchas verdes, mas juntas formam um mosaico em expansão.

“Mesmo sendo áreas relativamente jovens, com projetos que têm 20, 30 ou 40 anos, elas exercem uma função essencial ao permitir a movimentação da fauna e da flora, seja por meio de sementes, grãos ou pólen”, explica o professor Jerônimo Sansevero, do Laboratório de Ecologia Aplicada da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

A regeneração, porém, nem sempre é linear. Em muitas regiões, a floresta consegue se restabelecer por alguns anos, mas logo sofre novas pressões, desmatamentos, ocupações e incêndios. Essa oscilação cria um ciclo frágil, em que o verde cresce e é interrompido antes de atingir maturidade ecológica.

“Quando ocorrem incêndios ou queimadas, o processo precisa recomeçar praticamente do zero. O fogo na Mata Atlântica tem um impacto enorme, porque a nossa flora e fauna não são adaptadas ao fogo, diferentemente do que ocorre no Cerrado. Quando há um evento de queimada, a maioria das espécies não resiste, e o solo também é profundamente afetado. O impacto é muito nocivo”, afirma.

Thiago Rossi mostra uma semente de árvore pau-jacaré – Crédito: Sofia Miranda/ Agenda do Poder

O morro que voltou a ser verde

No alto do Morro da Pedra do Urubu, no Anil, em Jacarepaguá, Zona Sudoeste do Rio, um grupo de voluntários mistura o som das enxadas ao canto dos pássaros. Trata-se do Reflorestamento Pedra do Urubu. A iniciativa nasceu durante a pandemia de covid-19, quando os voluntários que atuavam na Floresta da Tijuca, na Zona Norte, ficaram impedidos de entrar no parque. Os voluntários logo descobriram a trilha do Urubu, uma encosta degradada, coberta por capim e restos de queimadas.

“Era um lugar esquecido, cheio de mato. A gente veio só pra conhecer e acabou ficando”, lembra Thiago Rossi, um dos fundadores. “Começamos com três pessoas, três ferramentas agrícolas e vontade. Tiramos o capim, abrimos covas e plantamos mudas que tínhamos em casa. Depois criamos um viveiro e com o tempo, mais gente chegou”, conta.

O grupo reúne moradores da Freguesia, também na Zona Sudoeste, e voluntários de várias regiões. Todos os sábados, às 8h, o trabalho começa e segue por horas de plantio acompanhadas de conversa. As espécies cultivadas variam entre aroeira, jerivá, ingá e jacarandá. Algumas sementes são colhidas no caminho da trilha até a pedra, e replantadas no topo do morro.

Todo sábado, moradores e voluntários se reúnem no alto da Pedra do Urubu | Crédito: Divulgação

Ainda segundo Thiago, o aprendizado veio da convivência com técnicos ambientais e do estudo autodidata. “No começo, achávamos que plantar era só cavar e regar. Depois percebemos que cada espécie tem seu tempo, sua luz, seu jeito de crescer. É preciso escutar a floresta pra saber onde colocar a próxima árvore”.

Com o tempo, o que era uma clareira árida virou um corredor sombreado. O solo voltou a reter umidade, as aves retornaram, e os primeiros frutos atraíram morcegos e insetos.

“Quando se pega um lote pra trabalhar, do zero, esse mato vai voltando junto com as mudas, competindo com elas. Aí vamos fazendo o manejo. Depois de uns anos, começamos a ver mudas crescendo bem precoces: aroeira, babosa. Logo no ano seguinte, já há floração, e, se ela está com fruto, já cumpre outro papel ecológico, servindo de alimento para a fauna. Aqui os morcegos chegam de longe atrás desses frutos”, aponta.

O grupo não tem CNPJ, nem financiamento fixo, mas sobrevive da colaboração entre vizinhos. Alguns ajudam no plantio, outros na comunicação ou nas redes sociais. Muitos aparecem uma vez e voltam meses depois.

Para participar, é preciso adequar as vestimentas ao plantio | Crédito: Divulgação

“O sábado é concorrido, mas sempre tem um núcleo que segura o trabalho. Já tivemos jovens, pessoas mais velhas, famílias inteiras. Eles ficam encantados”, lembra Rossi.

Benefícios a longo prazo

Esse envolvimento traz benefícios mentais e emocionais, como explica a psicóloga Rayane Rocha, pesquisadora em ecopsicologia:

“Os benefícios emocionais do plantio de árvores apontam a melhora do humor, redução de estresse, ansiedade, depressão e aumento da disposição. A razão dessas melhorias está relacionada ao envolvimento com um grupo que valoriza ações de regeneração, validando a demanda pessoal em um ato de cuidado coletivo”, detalha.

Além disso, há uma relação afetiva onde trabalhos se desenvolvem. “Eu cresci aqui na Freguesia, e as outras pessoas que entram no projeto têm uma história com o bairro. As pessoas precisam de espaço para morar. Esse espaço é o verde, é a área verde que ainda resta. Então, acho que estamos unidos pela vontade de cuidar um pouquinho do bairro, de não deixar que ele perca totalmente essa área verde, tão fundamental pra vida lá embaixo”, conta Thiago.

Dor que virou floresta

Em 2006, no município de Vassouras, Centro-Sul do Rio, Denise Thomé e o marido, Mauro, reuniam jardineiros do distrito de Andrade Costa para reaproveitar podas e produzir mudas de cerca viva, com intuito de gerar renda extra e agregar valor ao trabalho dos caseiros. O projeto ganhou novo sentido quando o parceiro morreu num acidente aéreo.

Criada há quase vinte anos, a ONG Vale Verdejante transformou um antigo pasto em floresta | Crédito: Reprodução

“Ficamos sem chão. Mas o grupo quis continuar, dessa vez em homenagem a ele”, lembra Denise. “Plantamos 50 árvores nas ruas. No ano seguinte, comprei um terreno de pasto e doei para a associação. A partir dali, decidimos transformar aquele espaço em floresta”, conta.

O terreno de 30 mil metros quadrados, tornou-se um laboratório vivo. Desde 2008, os voluntários plantam cerca de 500 árvores por ano, sempre no mês de novembro. Hoje, a área abriga mais de 8.500 mudas nativas da Mata Atlântica, um sistema agroflorestal, com meliponário e canteiros de plantas medicinais. Em 2009, o espaço foi reconhecido como Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN).

“Queremos mostrar que é possível viver com a floresta, e não contra ela”.

Denise Thomé

Mas, como qualquer outro, o trabalho enfrenta limitações — neste caso, a água. “Nosso maior problema é a água. O riacho que chega até aqui é intermitente, ou seja, só enche quando chove e vem poluído, sem saneamento nas casas da parte alta. Quando a chuva acaba, ficamos sem irrigação. O solo segura o que pode, mas a floresta sente”, conta.

Segundo Aliny Pires, florestas como a Vale Verdejante são fundamentais para proteger os recursos hídricos.

“A vegetação ripária, aquela localizada às margens de rios, lagos e nascentes, desempenham funções essenciais no controle da erosão, impedindo que o sedimento mobilizado pelas chuvas seja carregado para dentro dos corpos d’água. Essa vegetação funciona como um filtro natural, retendo partículas e poluentes, e garantindo melhor qualidade da água”, pontua a Aliny.

Denise Thomé, fundadora da ONG, plantou as primeiras árvores após a perda do marido | Crédito: Reprodução

 Parque Ecológico Mauro Romano

Atualmente, o Vale Verdejante acontece numa área que recebeu o nome do companheiro de Denise e recebe anualmente escolas e parceiros interessados.

“Tenho certeza de que a nossa presença aqui já mudou muita coisa, até porque a minha percepção, e a do grupo também, é de que a gente não vê a questão ambiental somente como plantar árvores. É uma questão cultural, social, tecnológica, econômica e política. Temos que ver todos esses aspectos”, destaca.

Floresta e água: qual é o impacto?

Há ainda a Lei de Proteção da Vegetação Nativa, o atual Código Florestal, que reconhece as Áreas de Preservação Permanente como prioritárias para a recomposição dessas matas. A restauração de vegetação nativa pode ainda reduzir custos de tratamento de água, segundo um estudo do grupo global de pesquisa World Resources Institute (WRI).

“A restauração da vegetação nativa no entorno dos corpos d’água da bacia do Rio Guandu, por exemplo, pode reduzir significativamente os custos de tratamento da água que abastece a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Esse estudo mostra de forma muito clara que as florestas que protegem os ambientes aquáticos não apenas garantem qualidade ambiental, mas também geram benefícios econômicos, ao diminuir os gastos com o tratamento da água”, diz Aliny.

Políticas e práticas

O estado do Rio também construiu um arcabouço legal robusto para proteger o que resta da Mata Atlântica, diz o professor do departamento de Geoquímica da Universidade Federal Fluminense, Wellington Kiffer:

“O Rio tem mais de 20% do território em unidades de conservação (UCs) e adota instrumentos econômicos que valorizam quem preserva. Esse mosaico, junto com o relevo e a maior efetividade das políticas de proteção, tem surtido efeito na conservação do nosso bioma como um todo, e especialmente no estado do Rio de Janeiro, que, como mostram os dados, foi um dos estados com menor taxa de desmatamento. Isso é um grande avanço.”

Antes e depois do Articum-sertão, em Jacarepaguá, após ações do projeto Refloresta Rio | Crédito: Reprodução

Conforme Kiffer, há ainda a relação entre o carioca e a floresta como um papel relevante. A presença de áreas verdes acessíveis molda o imaginário coletivo. “A conscientização também é importante. A população, principalmente a carioca, tem um certo apego porque a cidade é muito verde, tem muita ligação com as florestas, com as caminhadas, com os parques. Isso também é um fator sensível”.

O sucesso fluminense também está sustentado pelos incentivos econômicos. Conheça dois deles:

ICMS Ecológico

O ICMS é o imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços. No Rio, parte desse valor é redistribuída aos municípios conforme critérios ambientais.

”Hoje, no estado do Rio de Janeiro, esse repasse é calculado com base em alguns parâmetros de conservação. Até 45% da cota-parte pode ser distribuída conforme as unidades de conservação existentes no município. Isso fortalece o princípio do ‘conservador-recebedor’, ou seja, o município que preserva mais recebe mais”, pontua Kiffer.

Welington Kiffer, professor e geoquímico – Crédito: Gabriel Mattos/ Agenda do Poder

Pagamento por Serviços Ambientais (PSA)

Essa política recompensa quem protege nascentes, encostas e matas nativas. “O produtor, por exemplo, deixa de usar uma determinada área da propriedade, principalmente nascentes e áreas de difícil acesso e recebe uma compensação financeira por esse ‘não uso’”, explica o professor.

Outros projetos

Desde a década 1980, programas municipais e estaduais também estão comprometidos com a ampliação das áreas naturais e fizeram um trabalho lembrado com orgulho, de forma comum, pelos pesquisadores e ambientalistas. Além da recuperação ambiental, mobilizam comunidades e geram renda. Os principais projetos são:

  • Mutirão Refloresta Rio – capital: Criado em 1984, é considerado o maior programa urbano de reflorestamento do país. Mobilizou comunidades, gerou empregos e recuperou mais de 3 mil hectares de áreas degradadas em encostas e morros da cidade, com 100 comunidades envolvidas. O trabalho, feito em mutirões, tornou-se referência internacional e segue ativo até hoje.

Antes e depois, em 2011, das ações do Refloresta Rio no Méier – Crédito: Carlos Manoel/ Reprodução

  • Projeto Guapiaçu – Cachoeiras de Macacu (Região Serrana): Um dos maiores projetos de restauração ecológica da Mata Atlântica fluminense. Atua há mais de uma década na bacia do rio Guapiaçu, com foco em reflorestamento, pesquisa científica e educação ambiental. O projeto já restaurou milhares de hectares e abriga viveiros com mais de 100 espécies nativas.
  • Associação Mico-Leão-Dourado – Silva Jardim: A organização atua há décadas na restauração de fragmentos florestais na Região dos Lagos e no entorno da Reserva Biológica de Poço das Antas. Já recuperou cerca de 2.500 hectares, com taxa média de 80% de sobrevivência das mudas e 75 espécies por hectare. As ações beneficiam cerca de 200 famílias locais.
  • Régua / SOS Mata Atlântica – Guapiaçu (Cachoeiras de Macacu)
    Em parceria, as instituições restauraram 1.800 hectares de floresta na bacia do rio Guapiaçu. A taxa de sobrevivência varia entre 70% e 85%, com cerca de 90 espécies nativas por hectare. O projeto apoia 150 famílias, muitas delas envolvidas no viveiro de mudas e nas atividades de monitoramento ambiental.
  • Serra da Concórdia / Paraty – Sul Fluminense: Experiência conduzida com agricultores familiares e comunidades quilombolas, voltada à restauração e à agrofloresta. A diversidade alcança 60 espécies por hectare, com taxa de sobrevivência média de 75% das mudas. As famílias beneficiadas também relatam aumento de renda entre 20% e 30%.

Terra como terapia

O aumento da cobertura vegetal fluminense reflete algo mais profundo: a tentativa de refazer o elo entre pessoas e natureza. Segundo a psicóloga Rayane Rocha, esse processo é também psíquico. “Esse movimento de retorno à terra, revela o desejo de viver de forma digna e integrada e não submetido ao modo de vida de expansão e destruição das bases de vida na Terra”.

No cotidiano dos projetos, reflorestar exige paciência, constância e uma confiança disfarçada de sonho, de que outros deem continuidade ao trabalho:

“A gente trabalha com a ideia de perenidade. Não é um projeto comercial. É um compromisso com o lugar. O maior desafio é garantir que isso continue depois da gente, que as árvores cresçam e que alguém ainda venha regar”,

Thiago Rossi

Por Jornal da República em 12/10/2025
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