Entre cliques e dívidas, como é o rastro do vício nas apostas online

Plataformas de jogos online crescem às custas de brasileiros viciados em renda imediata

Entre cliques e dívidas, como é o rastro do vício nas apostas online

De início, eram apenas apostas inofensivas, com um ganho ou outro na tentativa de fazer dinheiro rápido. Aos poucos, os cliques, as notificações de recompensa e a tela colorida se tornaram uma atividade mais duradoura do que uma ou duas horas — até o momento em que viraram dívidas, vergonha e medo. A indústria global de apostas, que se expande em ritmo acelerado, projeta perdas líquidas dos consumidores que podem chegar a US$ 700 bilhões até 2028, segundo a Revista Lancet. 

A expansão das plataformas de apostas online no Brasil, somada à ausência de regulação efetiva até recentemente, criou um terreno fértil para a normalização da jogatina digital.

Impulsionados por patrocínios milionários em clubes de futebol, campanhas com influenciadores e promessas constantes de retorno financeiro imediato, as chamadas “bets” se tornaram parte do cotidiano, especialmente entre homens jovens de classe média e média-baixa, segundo aponta o Instituto DataSenado.

A pesquisa mostra que 13% da população com 16 anos ou mais apostou nos últimos 30 dias. Em números absolutos, são mais de 22 milhões de brasileiros.

Os jogos de azar e a herança histórica

Antes de entender o crescimento vertiginoso dos jogos de aposta online no país, é preciso olhar para trás. A aposta, afinal, não é uma invenção contemporânea, tampouco brasileira. No século XIX, a Inglaterra já abrigava as corridas de cavalo, as lutas e outros eventos que moviam multidões e fortunas.

Ali, a prática era tida como espetáculo e hábito social, que atravessou séculos com roupagens distintas, mas com a mesma promessa: ganhar muito em troca de um risco. Do Velho Mundo, essa cultura navegou oceanos e desembarcou com força nos países periféricos, trazendo não apenas o jogo em si, mas o desejo de virar a vida com um único lance. 

No Brasil, durante décadas, práticas como o bingo, as rifas e o jogo do bicho marcaram o cotidiano popular. Embora consideradas ilegais, essas formas de aposta se enraizaram no imaginário coletivo como atalhos legítimos para uma vida melhor.

O Estado, por sua vez, também manteve e incentivou sua própria modalidade de aposta: as loterias federais, os sorteios da Caixa Econômica e os bolões esportivos. Tudo isso, ainda que legalizado, alimenta a mesma fantasia: a possibilidade de escapar do sufoco com um bilhete premiado.

“A gente não pode esquecer da existência de um desejo de riqueza, uma busca para escapar dessa realidade que oprime o trabalhador, principalmente nesse contexto de crise. São crises econômicas, claro, mas também uma crise laboral”, aponta o professor e pesquisador em organizações pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Gabriel Correia.

Segundo o especialista, a sociedade se estrutura num modelo binário onde as duas únicas opções disponibilizadas são a de enriquecimento ou de fracasso — uma coisa ou outra.

“A perda da estabilidade no trabalho, o aumento das jornadas informais, a pejotização dos contratos, a dependência de auxílios estatais cada vez mais atacados no mundo, e, claro, uma financeirização econômica a qualquer custo que leva a um crescente endividamento da população”, analisa.

Nesse cenário, a ideia de depender exclusivamente do próprio esforço parece cada vez mais inalcançável. Seja por curiosidade, carência, desejo de ascensão ou pura tentativa de escapar da realidade, os jogos de aposta oferecem dois caminhos: o de quem consegue manter o controle, e o de quem se perde na lógica da recompensa instantânea.

Diferentemente dos tradicionais jogos como o bingo, os jogos de roleta e a sinuca, os de modalidade online estão ao alcance de qualquer um. Com poucos cliques, é possível apostar não só reais, mas também centavos, o que os torna acessíveis a qualquer hora e por qualquer valor.

Foi assim que o porteiro Lucas Cândido, de 27 anos, começou a apostar durante os intervalos do trabalho. Com um celular na mão e poucos minutos livres, o gonçalense arriscava pequenas quantias em bets de futebol e basquete americano, temas que dominava. No início, venceu algumas partidas e chegou a ganhar R$ 150, depois R$ 300. Com o tempo, criou um vínculo afetivo com as apostas. Hoje, assume uma compulsão:

“Comecei a jogar pra ter emoção nas partidas, ligava pra ver o futebol, tentava adivinhar quem ia fazer gol, aí virou vício. Hoje eu vejo como um vício. Até consigo me afastar, mas tem que ser algo muito forte. A maioria das vezes que eu paro é por falta de dinheiro”, assume.

Por falta de dinheiro… e por susto, quando as contas revelam a quantia já gasta e, quase sempre, perdida. “Eu não tenho noção das minhas perdas e ganhos. Já perdi muito. Quando faço as contas, fico uns dois, três dias sem jogar. E evito falar sobre isso com a minha mãe porque ela não gosta. Já pedi dinheiro emprestado pra apostar quando estava viciado, e devo ter perdido uns R$ 1 mil, R$ 2 mil”, conta.

Painel afixado em sala do Jogadores Anônimos orienta participantes com práticas a evitar e atitudes a cultivar durante o processo I Crédito: Gabriel Mattos/ Agenda do Poder

‘Agora vai’, ‘Estou sentindo que vou ganhar’

Diferente das consequências pelo excesso do uso das redes sociais, os jogos de cassino online produzem sensação de prazer e dependência semelhantes a outros tipos de vício, mas sem qualquer substância envolvida.

“O que acontece é que esses jogos liberam dopamina, o neurotransmissor ligado ao prazer, de um modo que deixa o jogador sempre querendo mais. Isso é potencializado pelo chamado reforço intermitente: as recompensas vêm de forma imprevisível, e essa incerteza mantém a pessoa grudada no jogo, esperando o próximo prêmio”, explica o psicólogo André Sena Machado, mestre e doutor pela PUC-Rio.

Essa busca contínua pelo ganho é calculada com precisão. As plataformas são desenhadas para manter o jogador em estado de alerta constante. Os sons das vitórias, os efeitos visuais das moedas na tela, os gráficos vibrantes que piscam como máquinas de caça-níquel modernas compõem uma estética pensada para gerar excitação. É o que relata Lucas Cândido.

“O que me prende no jogo é querer ter uma renda extra. E é o fato de sentir adrenalina também. Tem uma frase que sempre costumo dizer aos meus amigos, que a gente sente a adrenalina na veia. Às vezes eu estou à toa, não tenho nem dinheiro para apostar, só R$ 30, e coloco para tentar ganhar alguma coisa”.

A rotina se dissolve no hábito de checar o aplicativo. A aposta vira companhia nos intervalos do trabalho, nas viagens de ônibus e nos minutos antes de dormir. No início, é passatempo disfarçado de oportunidade. Depois, um ritual silencioso e solitário. Muitas vezes, escondido de familiares, amigos e parceiros. Como qualquer vício, o jogo pede segredo.

 “A arquitetura desses jogos é feita pra mexer direto com o cérebro. As recompensas rápidas, os sons animados, as luzes piscando e as notificações constantes ativam o sistema de prazer, liberando dopamina e criando uma sensação boa que a pessoa quer repetir. O segredo está na imprevisibilidade: como o cérebro busca padrões, ele tenta ‘adivinhar’ quando vem a próxima vitória, o que mantém o jogador ativo mesmo depois de várias perdas”, reforça Machado.

Lema diário dos membros é evitar a primeira aposta I Crédito: Sofia Miranda/ Agenda do Poder

Num relacionamento sério… com o vício

Como no ciclo da dependência química, conforme o programa do Narcóticos Anônimos (NA), a compulsão pelo jogo também se assemelha a uma lógica relacional, como nos amores românticos.

Primeiro, vem o namoro, onde tudo é leve, prazeroso e sem grandes responsabilidades. Depois, o noivado, quando a compulsão ganha contornos mais profundos. No “casamento”, a progressão é inversa: ao invés de construtiva, torna-se destrutiva.

É o que diz Genaro**, de 63 anos, padrinho do Jogadores Anônimos. Integrante da irmandade em Niterói desde 2000, ele fala com a serenidade de quem atravessou o caos e escolhe lembrar, para não correr o risco de voltar para o passado. A definição de ”jogo”, segundo o grupo que o acolheu, vai além das apostas por dinheiro:

“Qualquer lance, por mais íntimo ou insignificante que pareça, onde o resultado é incerto ou dependa da sorte ou da habilidade, constitui jogo para nós, jogadores em recuperação”.

Genaro começou a apostar cedo, aos 15 anos, com o corpo esguio sobre uma mesa de sinuca, quando ainda era preciso ter habilidade real para vencer. Na época, para ganhar era preciso ter habilidade, saber projetar o corpo da maneira certa sobre a mesa de bilhar, para encaçapar as bolas miradas. Hoje, ele sabe bem onde essa dedicação pode levar. 

“Quando a pessoa chega aqui, não é porque está tudo bem. Ninguém procura o Jogadores Anônimos de forma espontânea. Na maioria das vezes, é alguém da família quem vem primeiro, buscando ajuda para quem já chegou ao fundo do poço”, conta.

Foi o que aconteceu com ele. Genaro não chegou sozinho. Acabou levado pela ex-esposa depois de mergulhar em um ciclo que corroeu seus salários, um bom emprego, a relação com as filhas e a própria dignidade.

“Quando eu ganhava na sinuca, me sentia poderoso. No bingo, quando gritava ‘bingo’, era como se eu tivesse conquistado algo grandioso. O jogo constrói um cenário para te atrair. Tapete vermelho, luzes, o prêmio vindo numa bandeja de prata. Mas eu nunca levei nada real dali”, lembra.

O dinheiro mal aquecia o bolso. No dia seguinte, já estava perdido em outras apostas. Quando a filha pedia R$ 1 para comprar pão, era a vez da vergonha corroer o pai. “Ela pedia um real, às vezes no sábado, e eu me fazia de coitado. Depois a mãe dela falava: ‘Pergunta ao teu pai onde ele deixou o dinheiro dele’”.

Uma das lembranças que se recusa a apagar é a vez em que passou três dias sem voltar para casa, comendo sobras de pão. Dormia na rua com os parceiros de aposta, saindo direto do escritório onde trabalhava, tudo para não gastar um centavo que não fosse destinado à primeira aposta do dia seguinte.

“Não quero esquecer disso. Essas lembranças estão no baú do que vivi durante o tempo em que jogava  e das conquistas que tive desde que parei. São cicatrizes da jogadição ativa.” Mas a virada de chave veio no ponto mais baixo comum a muitos jogadores. Numa segunda-feira silenciosa, um pensamento suicida atravessou-lhe a mente.

“Me mantive abstinente por quatro meses, frequentando as reuniões, que são a base da recuperação. Depois, voltei a jogar. Fiquei quase um ano sofrendo de novo. Durante esse período, eu sabia que existiam pessoas se recuperando e eu não estava entre elas. Fiquei refletindo o fim de semana inteiro. Pensava que seria melhor morto do que vivo, que teria mais valor assim”.

Hoje, Genaro é um dos padrinhos do grupo. Participa de até cinco reuniões por semana e compartilha sua trajetória com outros jogadores, através da terapia do espelho.  Seu desafio, no entanto, ainda é driblar as tentações oferecidas pelas plataformas. ‘”A última vez que joguei foi em 24 de junho. Mas a próxima partida está sempre a um clique. Está no banheiro, no ônibus, no carro. Basta pegar o celular e apertar um botão”.

É por isso que seu ritual diário começa com uma prece: agradece por estar vivo e pede, apenas, que não faça a primeira aposta. “Se eu não fizer a primeira, a segunda não acontece”. Com isso, sua vida se reorganizou, com as contas em dia, crédito recuperado, trabalho mantido e um novo propósito de vida. 

Maria mora em Miracema, no interior do estado e visita a irmandade regularmente I Crédito – Sofia Miranda/ Agenda do Poder

Passo um

Por meio de Genaro que Maria**, de 76 anos, conseguiu se firmar nos 12 passos do programa e completa, neste ano, dois anos sem jogar.

As noites de jogatina preencheram, por um tempo, o vazio deixado pela morte do marido, com quem viveu 27 anos. Enquanto não via dívidas, enxergava as luzes do bingo, as novas amizades e a fumaça do cigarro que exalava o ambiente. Todo o conjunto tornava as noites mais suportáveis sem o companheiro.

A irmã que já era mergulhada no vício, estendeu a mão e Maria atravessou a rua de Icaraí, em Niterói, em direção a um caminho que levaria anos para ser desfeito.

“Eu chorava muito aos domingos, sozinha em casa. Minha irmã dizia: ‘Vamos ao bingo, você vai distrair a cabeça’. E eu fui”. Logo, a primeira ida virou hábito. Depois, compulsão. E então, a filha apareceu no salão: ‘Vamos embora, mãe. Você está perdendo seu dinheiro.’” Mas a resposta veio em seguida, direta e dura. “Mas é meu dinheiro”. Assista ao desabafo:

Sofrimento psíquico 

A irritação não era com a filha, era com a ideia de abrir mão daquilo, do ganho prometido, do brilho das luzes, do estímulo constante. Afinal, a próxima cartela poderia ser a sorte grande. Esse sentimento de frustração não é incomum e pode se intensificar quando alguém tenta limitar o comportamento, explica o psicólogo André Sena Machado:

“No consultório, quem tem esse vício costuma chegar com um peso enorme. Ansiedade e depressão são comuns, junto com a preocupação com o dinheiro perdido e as consequências na vida. A culpa e a vergonha aparecem muito, principalmente quando a pessoa mentiu para quem ama ou percebeu o estrago que causou. A autoestima fica abalada, e a sensação de fracasso por não controlar o jogo é constante. Fora isso, irritação e frustração surgem, especialmente se alguém tenta confrontar ou limitar o comportamento”, afirma.

Com Maria, não foi diferente. Além disso, teve que contar mentiras para manter uma narrativa já desmoronada. Dizia às filhas que ia ao cinema e checava os cartazes para não dar margem à desconfiança. Quando não era o cinema, era o baile. De mentira em mentira, acabou indo contra os próprios princípios pelo jogo. 

“Mentir, então, nem pensar. Meu pai uma vez deixou de me bater porque eu disse a verdade. Na irmandade, aprendemos que precisamos ser honestos. Se você recaiu, tem que dizer. Tem que declarar e voltar. A mentira é desonestidade, e isso não cabe no programa”, destaca. 

O vício de Maria chegou a um momento de dívidas impagáveis, conta. Teve que vender o apartamento deixado pelo marido, o carro e precisou de empréstimos bancários para pagar uma dívida de R$ 30 mil.

“A maior loucura foi essa: pegar empréstimo para jogar”. Com o tempo, passou a fazer parte de uma realidade que nunca quis integrar, a das noites regadas de bebidas e cigarro. Segundo ela, o ambiente pesava: “Muita fumaça, bebida, pessoas estranhas. Eu nunca fumei, nunca bebi. Aquilo me fazia mal espiritualmente”, conta.

A transformação não aconteceu de um dia para o outro, mas veio. Assim como seu padrinho, pensou em tirar a própria vida. Aos poucos, depois de firmar no programa de irmandade, a vida naturalmente seguiu seu curso natural. Hoje, dois anos longe do vício, ela cultiva plantas, cuida dos netos e dança nas festas da igreja. 

“Hoje sou outra pessoa. Eu sou emotiva, choro muito, mas agora é diferente. Antigamente, eu não ligava para nada. Tinha netos, e ainda assim não queria me envolver. Preferia ir ao bingo a estar com eles. Dizia: ‘Não posso hoje, tenho compromisso.’ Mas o compromisso era com o vício. Hoje fico com minha filha, tenho amizades, vou a praças, festas de igreja, danço, planto. Tenho flores, hortaliças”, lembra. 

As escolhas do passado reverberam como superação. “Arrependimentos? Claro que tenho. A gente nunca esquece totalmente. São perdas que marcam, mas temos que aceitar que o que foi perdido está perdido. Não adianta tentar recuperar o que não volta. O importante é aprender e seguir em frente”, conclui, orgulhosa. 

Como buscar ajuda

O movimento Jogadores Anônimos nasceu nos Estados Unidos, em 1957, e hoje está presente em 69 países. No Brasil, segue o modelo dos Alcoólicos Anônimos, com encontros gratuitos, anônimos e abertos a qualquer pessoa que deseje parar de jogar.

Na Região Metropolitana do Rio, há reuniões em São Gonçalo (Neves) e em Niterói (Centro e Icaraí).

Para mais informações acesse o site www.jogadoresanonimos.org.br ou ligue para o número de plantão (21) 99750-3174. 

**: nomes fictícios para proteger a identidade das vítimas citadas na reportagem.

Fonte Agenda do poder

Por Jornal da República em 28/07/2025
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