Meio século de abandono: São Gonçalo e o transporte público expostos como reféns de sistema que privilegia lucro sobre dignidade de 1 milhão de pessoas

Trabalhadores dormem na rua porque não há transporte para voltar a São Gonçalo

Meio século de abandono: São Gonçalo e o transporte público expostos como reféns de sistema que privilegia lucro sobre dignidade de 1 milhão de pessoas

São Gonçalo: o isolamento cruel da segunda maior cidade do RJ que vive como ilha urbana há meio século

São Gonçalo vive um isolamento urbano que beira o absurdo: com quase um milhão de habitantes, a segunda maior cidade do estado do Rio de Janeiro permanece como uma ilha de abandono em plena região metropolitana.

Sem rodoviária há mais de 50 anos, sem conexão por barcas e sem perspectiva real de metrô, o município condena diariamente centenas de milhares de trabalhadores a uma via-crúcis que transforma o simples ato de ir e vir numa jornada de sofrimento e humilhação.

Enquanto cidades menores do interior possuem terminais rodoviários dignos e conexões eficientes com a capital, São Gonçalo permanece refém de um sistema de transporte que a trata como território invisível.

A geografia do abandono se materializa nas margens das rodovias RJ-104, RJ-106 e BR-101, onde milhares de pessoas embarcam e desembarcam diariamente como refugiados urbanos em busca de transporte. Dados do Departamento de Estradas de Rodagem revelam o movimento diário intenso: 32.686 veículos na RJ-104 e 34.664 nos trechos da RJ-106. No meio desse fluxo caótico, moradores transformam as margens das estradas em terminais improvisados, numa cena que envergonha qualquer noção de civilidade urbana.

O isolamento de São Gonçalo não é acidente geográfico ou resultado de limitações técnicas, mas consequência de décadas de negligência política que condena a população a uma condição de subcidadania urbana. Enquanto o site oficial das Barcas Rio lista seis linhas em operação - Praça XV para Arariboia, Charitas, Cocota, Paquetá, e as ligações com Ilha Grande - São Gonçalo permanece ausente do mapa aquaviário, como se seus quase um milhão de habitantes simplesmente não existissem para o sistema de transporte estadual.

O drama diário: quando ir trabalhar vira missão impossível

O segurança Adeilson Batista da Silva, de 47 anos, personifica o drama de centenas de milhares de gonçalenses: "Tive que dormir na rua com a minha companheira. Arriscado. Lá em Itaboraí a quantidade de assaltos é muito grande". Sua experiência expõe como a ausência de infraestrutura básica transforma trabalhadores honestos em vítimas de um sistema que os abandona à própria sorte, forçando-os a passar noites nas ruas porque não existe estrutura adequada de transporte para retornar a São Gonçalo.

O professor Paulo César Ferreira Junior desenvolveu verdadeiras "táticas de guerra urbana" para conseguir chegar em casa: "Algumas vezes desço em algum ponto da BR para ficar mais fácil para ir para casa, ou então desço em algum ponto da RJ". Essa declaração revela a perversidade de um sistema que obriga cidadãos a se tornarem especialistas em geografia rodoviária, transformando cada viagem numa operação militar que exige planejamento detalhado e conhecimento das rotas de fuga.

Durante o período noturno, a situação se torna ainda mais dramática. Não existe transporte direto paralocalidades de São Gonçalo após determinado horário, obrigando trabalhadores que saem tarde do serviço a fazer baldeação em Niterói, aumentando custos, tempo de viagem e exposição à violência urbana.

Essa realidade cruel expõe como o sistema foi pensado para beneficiar empresas de transporte que lucram múltiplas vezes com uma única necessidade do cidadão, transformando o direito de ir e vir em fonte de exploração comercial.

Dados do Censo 2022 do IBGE revelam que 56% dos trabalhadores gonçalenses utilizam ônibus diariamente para se deslocar ao trabalho, enfrentando tarifas que podem chegar a R$ 5,94 por viagem.

Para uma família com dois adultos trabalhadores, o custo mensal apenas com transporte pode ultrapassar R$ 700, comprometendo gravemente o orçamento doméstico. Cerca de 33,1% dos trabalhadores gastam cerca 1 hora para chegar ao trabalho, enquanto 26,4% levam de 1 a 2 horas numa jornada que deveria ser direito básico, não tortura diária.

Ausência de rodoviária: a vergonha que dura cinco décadas

A ausência de um terminal rodoviário em São Gonçalo há mais de cinquenta anos representa uma das maiores aberrações da gestão pública brasileira. Uma cidade maior que Florianópolis, Vitória ou João Pessoa força seus moradores a embarcar e desembarcar nas margens de rodovias movimentadas, como se fossem andarilhos sem destino ou direitos. Cortada por três rodovias estratégicas que conectam o estado, São Gonçalo não consegue oferecer sequer um terminal rodoviário digno para sua população.

Especialistas em urbanismo explicam que as rodoviárias surgiram historicamente como símbolos de progresso e conectividade urbana. "O posicionamento das rodoviárias nos centros urbanos funcionava como um ícone que sinalizava desenvolvimento e servia como porta de entrada civilizada da cidade", explica urbanista consultado. Em São Gonçalo, essa simbologia nunca existiu, condenando a cidade a crescer sem esse marco civilizatório fundamental.

A consequência prática é devastadora: passageiros que chegam a São Gonçalo vindos de outras cidades desembarcam em pontos improvisados nas margens das rodovias, expostos ao trânsito pesado, à poluição e à violência urbana. Idosos, crianças, pessoas com deficiência e gestantes são obrigados a caminhar por acostamentos perigosos carregando bagagens, numa cena que envergonha qualquer noção de dignidade humana.

A situação se agrava durante a madrugada e nos fins de semana, quando a frequência de ônibus diminui drasticamente. Trabalhadores que precisam viajar para outras cidades enfrentam longas esperas em locais sem abrigo, banheiros ou segurança, transformando cada viagem numa aventura de risco. Mães com crianças pequenas, trabalhadores com ferramentas e estudantes universitários dividem o mesmo espaço precário nas margens das estradas, numa demonstração clara do descaso público com a segunda maior cidade do estado.

Isolamento aquaviário: quando a geografia vira maldição política

O isolamento aquaviário de São Gonçalo é ainda mais revoltante quando consideramos sua localização privilegiada na Baía de Guanabara. A cidade possui extensa costa marítima que poderia facilmente abrigar estações de barcas modernas e eficientes, conectando-a diretamente ao centro do Rio de Janeiro em menos de 30 minutos. No entanto, enquanto o Consórcio Barcas Rio opera seis linhas regulares, São Gonçalo permanece ausente do mapa aquaviário como se fosse território estrangeiro.

A promessa de uma estação de barcas ligando São Gonçalo ao Rio de Janeiro é repetida há mais de cinco décadas, transformando-se em piada cruel que se repete a cada campanha eleitoral.

Em 2009, o então governador Cabral garantiu categoricamente que "até o final do ano São Gonçalo teria sua estação, utilizando verba do FECAM". Quinze anos depois, a promessa permanece como mera retórica política, enquanto a população continua refém de um sistema de transporte inadequado e humilhante.

O contraste é gritante quando comparamos com outras localidades atendidas pelo sistema aquaviário. A Ilha de Paquetá, com pouco mais de 3.000 habitantes, possui linha regular de barcas com tarifa de R$ 4,70 por viagem de 60 minutos.

Charitas, bairro nobre de Niterói, é atendida por linha diferenciada que cobra R$ 7,70 por trajeto de apenas 28 minutos.

Enquanto isso, São Gonçalo, com quase um milhão de habitantes e importância econômica fundamental para o estado, permanece completamente excluída do sistema aquaviário.

Decisão judicial histórica foi revertida para proteger interesses empresariais

Em 13 de abril de 2010, a juíza Maria Paula Gouvêa Galhardo, da 4ª Vara de Fazenda Pública da Capital, proferiu decisão que deveria ter mudado o rumo do transporte aquaviário no estado. Julgando procedente ação popular ajuizada em 2001 pelo deputado estadual Carlos Minc, a magistrada declarou a caducidade da concessão das linhas Praça XV/Charitas, Praça XV/São Gonçalo, Praça XV/Guia de Pacobayba, Praça XV/Barra da Tijuca e Rio de Janeiro/São Gonçalo.

A decisão determinava que o Estado do Rio de Janeiro, como poder concedente, reavesse as parcelas do serviço público respectivas, podendo licitá-las livremente. Era a oportunidade perfeita para encerrar uma concessão que nunca cumpriu suas obrigações contratuais e que mantinha a população refém de um serviço inadequado.

Processo: 0056005-06.2001.8.19.0001 (2001.001.054107-0)
Distribuido em 27/04/2001
Comarca da Capital  -  Cartório da 4ª Vara da Fazenda Pública
Acao: Ação popular
Assunto: Ato Lesivo ao Patrimônio Artístico, Estético, Histórico ou Turístico / Atos Administrativos

Classe: Ação Popular - Lei 4717/65

Autor: CARLOS MINC BAUMFELD e outro(s)...
Réu: ESTADO DO RIO DE JANEIRO e outro(s)...
Advogados:
RJ073146 - LUIZ PAULO VIVEIROS DE CASTRO
RJ095313 - PABLO FELGA CARIELLO
RJ128043 - RALPH ANZOLIN LICHOTE
RJ000001 - RENAN MIGUEL SAAD
RJ025538 - SERGIO MAZZILLO


ULTIMO MOVIMENTO:
Tipo do Movimento:Enviado para publicação
Data do expediente:27/04/2010
Tipo do Movimento: Recebimento
Data de recebimento: 15/04/2010
Tipo do Movimento: Sentença - Julgado procedente em parte do pedido
Data Sentença:15/04/2010
Sentença: ...JULGO PROCEDENTE EM PARTE O PEDIDO, para declarar a caducidade da concessão das linhas: Praça XV - Charitas; Praça XV - São Gonçalo; Praça XV - Guia de Pacobayba; Praça XV - Barra da Tijuca e Rio de Janeiro - São Gonçalo (seletiva especial), reavendo o PODER CONCEDENTE as referidas parcelas de serviço público, podendo licitá-las livremente... 

Mas conforme relata um advogado da ação, Dr. Ralph Lichotti 'no entanto, a concessionária apelou da decisão e encontrou na 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro um acolhimento surpreendente ao seu pedido de continuar explorando as concessões'.

O desembargador Ricardo Rodrigues Cardoso fundamentou sua decisão alegando que "caberia ao Poder Concedente verificar a conveniência da declaração da caducidade da concessão" e que "declarar ou não a caducidade do direito de exploração das linhas se insere no juízo de discricionariedade do Poder Concedente". Essa interpretação jurídica criou um precedente perigoso que protege concessionárias incompetentes e deixa a população sem recurso legal efetivo, transformando as concessões em cartas brancas para exploração sem contrapartida adequada à sociedade, e até hoje nada foi feito para criação da linha que teria que ter sido implantada há mais de meio século atrás.

Ausência de metrô: promessas que viram piada há meio século

A Linha 3 do Metrô, que deveria conectar Niterói a São Gonçalo, representa talvez o maior símbolo das promessas vazias da política fluminense. Anunciada pela primeira vez em 1968, a linha acumula mais de cinco décadas de promessas eleitorais sem jamais sair do papel, transformando-se numa piada cruel que se repete a cada campanha política.

Durante sua campanha de reeleição, o ex-governador Sérgio Cabral voltou a falar no projeto, alegando que "o tribunal teria encontrado irregularidades no projeto, ainda no governo anterior, em 2002". Em suas próprias palavras, "essa Linha 3 do metrô, que tem dinheiro no caixa, tem se deparado com erros do passado anteriores ao meu governo". Os "erros do passado" continuam sendo usados como justificativa para a inação presente, numa estratégia política que transfere responsabilidades entre gestões sem jamais assumir compromissos concretos.

Em 2015, o então governador Luiz Fernando Pezão admitiu publicamente a falta de recursos e prazos para implementação do metrô ou BRT na região, numa confissão rara de incompetência administrativa. Em 2020, o governador Wilson Witzel prometeu definir a melhor solução de mobilidade para o município, seja por meio do metrô ou das barcas, mas até o momento nenhuma decisão concreta foi tomada.

A ausência de metrô em São Gonçalo não é apenas uma questão de infraestrutura, mas de justiça social. Enquanto bairros nobres do Rio de Janeiro são contemplados com extensões do sistema metroviário, a segunda maior cidade do estado permanece esquecida, obrigando seus moradores a longas jornadas de sofrimento em ônibus superlotados e precários. Essa desigualdade estrutural não é acidental, mas resultado de escolhas políticas que perpetuam a segregação socioespacial.

Caos no transporte público: quando sobreviver vira heroísmo

O caos no transporte público de São Gonçalo transforma cada viagem numa prova de resistência física e psicológica. A redução da frota de ônibus após a pandemia agravou dramaticamente a situação, com relatos de esperas superiores a uma hora e veículos superlotados que transportam passageiros em condições sub-humanas. Trabalhadores são obrigados a sair de casa antes do amanhecer para conseguir chegar ao trabalho no horário, numa rotina que rouba horas preciosas do convívio familiar e do descanso.

A empresas que tradicionalmente operavam com ônibus climatizados nas linhas Alcântara-Niterói e São Gonçalo-Niterói, substituiu seus veículos por ônibus velhos sem ar-condicionado, numa demonstração clara de como as empresas priorizam o lucro em detrimento do conforto dos usuários. Durante os meses de verão, os ônibus se transformam em fornos ambulantes onde trabalhadores são submetidos a temperaturas insuportáveis, chegando ao trabalho exaustos e desidratados.

A superlotação dos ônibus cria situações de risco constante, especialmente para idosos, gestantes e pessoas com deficiência. Relatos de passageiros prensados contra as portas, quedas durante freadas bruscas e brigas por espaço são rotineiros, transformando o transporte público numa experiência traumática que afeta a saúde mental e física dos usuários.

A falta de integração entre os diferentes modais obriga os usuários a pagar múltiplas tarifas para completar uma única viagem. Um trabalhador que more em São Gonçalo e trabalhe no centro do Rio pode gastar mais de R$ 15 por dia apenas em transporte, considerando ônibus intermunicipal, barca ou metrô, e transporte local. Para quem ganha salário mínimo, isso representa mais de 30% da renda mensal, transformando o direito de ir e vir em privilégio econômico.

Consequências sociais: quando o isolamento vira exclusão

O isolamento de São Gonçalo gera consequências sociais devastadoras que vão muito além do desconforto no transporte. Jovens gonçalenses enfrentam dificuldades extras para acessar universidades, cursos técnicos e oportunidades de emprego na capital, perpetuando ciclos de exclusão social e limitando suas perspectivas de ascensão econômica.

Trabalhadores que conseguem empregos no Rio de Janeiro enfrentam jornadas extenuantes que podem chegar a 4 horas diárias apenas em deslocamento, tempo que poderia ser dedicado à família, estudos ou lazer. Essa realidade afeta especialmente as mulheres, que além da jornada de trabalho formal ainda enfrentam a dupla jornada doméstica, restando-lhes pouquíssimo tempo para descanso e cuidados pessoais.

O isolamento também impacta o acesso a serviços de saúde especializados, concentrados na capital. Pacientes que precisam de tratamentos regulares no Rio de Janeiro enfrentam dificuldades extras de deslocamento, muitas vezes chegando atrasados às consultas ou desistindo do tratamento devido às dificuldades de transporte.

Empresários e comerciantes gonçalenses também sofrem com o isolamento, enfrentando dificuldades para receber fornecedores, participar de reuniões de negócios e acessar serviços bancários especializados. Essa realidade limita o desenvolvimento econômico local e perpetua a dependência em relação à capital, criando um ciclo vicioso de subdesenvolvimento.

A urgência de uma solução: direito básico não pode esperar mais

O isolamento de São Gonçalo não é uma questão técnica complexa que demanda décadas de estudos, mas uma decisão política que pode ser resolvida com vontade administrativa e investimento adequado. A construção de uma rodoviária moderna, a implantação de linhas de barcas e a extensão do metrô são projetos perfeitamente viáveis que dependem apenas de priorização política.

As palavras de Joaquim Nabuco, proferidas em 1870, ecoam com força devastadora na realidade gonçalense: "O pouco serve hoje, o muito amanhã não basta". Cada dia de atraso na solução dos problemas de transporte representa milhares de horas de sofrimento humano, milhões de reais desperdiçados em deslocamentos ineficientes e oportunidades perdidas de desenvolvimento econômico e social.

A segunda maior cidade do estado não pode continuar sendo tratada como território invisível pelos gestores públicos. São Gonçalo merece e precisa de transporte público digno, não como favor político, mas como direito constitucional fundamental. O isolamento cruel que perdura há meio século precisa acabar, e a população gonçalense precisa finalmente ter acesso aos mesmos direitos básicos de mobilidade urbana que qualquer cidadão brasileiro deveria ter.

A luta contra o isolamento de São Gonçalo é uma luta por dignidade, justiça social e direitos humanos básicos. Enquanto essa situação perdurar, o estado do Rio de Janeiro continuará sendo cúmplice de uma das maiores injustiças urbanas do país, condenando quase um milhão de pessoas a uma condição de subcidadania que envergonha qualquer noção de civilidade e desenvolvimento social.

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Por Jornal da República em 13/12/2025
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