O país que prefere atalhos

Entre diagnósticos frágeis e respostas reativas, o Data Favela devolve ao debate a complexidade que o país tenta simplificar.

O país que prefere atalhos

Por Lívia Louvel

 

O debate público brasileiro cristalizou uma tendência recorrente: converter fenômenos complexos em categorias rígidas. Entre “tráfico”, “crime organizado”, “facção” ou, mais recentemente, “terrorismo”, tornou-se comum que a escolha do termo substitua a análise da realidade. O vocabulário cresce, mas a compreensão não acompanha. Cada palavra redefine fronteiras de ação, autoriza determinados tipos de resposta e molda a forma como o país decide quem está dentro — e quem pode ser facilmente colocado fora — da gramática da cidadania.

Essa preferência por atalhos retóricos não nasce do acaso. Ela decorre de um desconforto nacional com complexidade. A pobreza é tratada como inconveniência moral, e a violência como falha individual. Nesse cenário, a favela se transforma em superfície de projeção: depositam-se nela medos, expectativas e narrativas políticas em disputa. Pouco importa se essas narrativas derivam de diagnósticos frágeis; importam sua utilidade imediata e sua capacidade de produzir coesão emocional.

Mas fenômenos que operam no limite entre economia popular, informalidade, violência e vulnerabilidade não se deixam reduzir facilmente. A vida nas margens do Estado brasileiro não cabe nas dicotomias com que o país tenta organizá-la. Ali, legalidade e ilegalidade se entrelaçam de maneira menos dramática — e mais cotidiana — do que supõe o debate público.

Essa realidade ilumina um ponto central: nos espaços populares, a divisão entre legalidade e ilegalidade não se apresenta como ruptura, mas como continuidade. Famílias transitam entre essas margens, não por vocação ao risco, mas pela combinação entre volatilidade econômica, interrupções recorrentes de trajetória e alternativas formais que, embora existam, frequentemente se mostram burocráticas, instáveis ou de retorno insuficiente para competir com a renda imediata. Enquanto o país insistir em interpretar esse fenômeno exclusivamente pelos marcos penais ou pelos marcos retóricos — ampliando ou reduzindo categorias conforme o clima político — continuará respondendo aos sintomas, não às causas.

A opção por termos como “terrorismo” possui efeitos imediatos. Ela legitima escaladas repressivas, amplia a margem de ação do Estado e produz uma narrativa que desloca a favela para o campo da ameaça. A consequência desse enquadramento é conhecida: políticas pautadas por urgência emocional, não por diagnóstico. Quando o vocabulário se expande para abarcar fenômenos que não foram analisados com rigor, a política pública tende a operar por intuição, não por evidências.

É justamente nesse ponto que dados da recente pesquisa Raio-X da Vida Real 2025, conduzida pelo Data Favela em parceria com a CUFA, se tornam incontornáveis. O levantamento não propõe uma nova narrativa — oferece um conjunto de evidências capaz de desmontar várias das antigas. Ouviu 3.954 pessoas envolvidas nas dinâmicas locais do crime em 23 estados, e o que emerge desse retrato não é excepcionalidade, mas continuidade. Não é ruptura, mas adaptação. Não é destino, mas pragmatismo econômico.

Os dados revelam um cotidiano marcado pela instabilidade. Sessenta e três por cento dos entrevistados vivem com até dois salários-mínimos e oitenta e dois por cento dependem de renda diária. A capacidade de poupar é quase nula: apenas nove por cento conseguiram guardar qualquer quantia no último ano.

O sistema financeiro formal também permanece distante: apenas uma minoria utiliza banco para guardar dinheiro. Entre os que conseguem manter algum valor reservado, a maior parte recorre a formas informais — muitos guardam em casa, alguns usam pequenos cofres. Já quando precisam de crédito, a lógica muda: é comum recorrer a familiares ou amigos, não para proteger recursos, mas como alternativa de financiamento diante da dificuldade de acessar instrumentos formais.

Outro dado relevante tensiona ainda mais o senso comum. Trinta e seis por cento conciliam o envolvimento com o crime com alguma atividade legal — comércio ambulante, entregas, serviços domésticos, pequenos reparos, apoio em empreendimentos familiares. Isso não elimina responsabilidade individual. Mas demonstra que, nesses territórios, o vínculo com a formalidade nunca desapareceu por completo; ele apenas não se sustenta com a estabilidade mínima para competir com o ganho imediato.

Há, ainda, o vetor simbólico: consumo. A pesquisa revela preferências de marca — carros, higiene, telefonia, bancos — que espelham o imaginário de pertencimento das classes médias urbanas. Não se trata de luxo; trata-se de linguagem social. Mesmo sob escassez, aspira-se o que o Brasil inteiro aspira. Esse dado, frequentemente tratado como curiosidade, é estrutural: mostra que o crime não cria subcultura isolada. Ele opera dentro do mesmo ecossistema de expectativas e signos.

A pesquisa do Data Favela oferece justamente o contrário: evidências. Ela mostra que o país convive com uma economia fragmentada, mas interligada; que a informalidade, longe de ser exceção, compõe o eixo de sobrevivência de milhões; que o crime, nesses territórios, não emerge como estrutura separada, mas como distorção de uma mesma dinâmica socioeconômica. Essa constatação não diminui a gravidade da violência, nem relativiza seus impactos. Apenas desloca a lente para onde as respostas efetivas precisam começar: a base material da desigualdade brasileira.

E é aí que a discussão retorna ao início. Categorias como “terrorismo” ganham espaço porque carregam potência retórica, mas não acrescentam capacidade analítica. O Brasil já testou, por décadas, um modelo de segurança baseado em repressão ampliada, guerra às drogas e encarceramento em massa — e o saldo é um acúmulo de frustrações. A insistência nesse paradigma produziu expansão carcerária, ciclos de letalidade policial, aumento de facções e instabilidade crônica, sem entregar a queda estrutural da violência que deveria justificar esse caminho.

Não há solução sustentável que dispense diagnóstico — e diagnóstico, aqui, não é ponto de chegada, mas processo contínuo, permanentemente ajustado. Não há política pública eficaz que dispense compreensão — compreensão madura, atenta às mudanças que moldam a economia popular em tempo real. Não há segurança possível que ignore a economia que pulsa dentro das favelas — uma economia dinâmica, que exige do Estado capacidade de leitura constante.

Se o objetivo for romper o ciclo de violência, será necessário operar em outra frequência: presença institucional contínua, integração produtiva, educação que não se interrompa a cada crise familiar, políticas urbanas que respeitem o tecido social e segurança ancorada em inteligência, não em impulso.

O Brasil não avança quando confunde nomear com resolver. Avança quando transforma diagnóstico em política pública, evidência em estratégia e dados em direção. O levantamento do Data Favela não encerra a discussão — inaugura um patamar mais alto de exigência. Ele convida o país a tratar a favela com rigor analítico, ambição civil e maturidade política. E, sobretudo, a compreender que qualquer projeto sério de segurança e mobilidade social no século XXI começa por reconhecer a favela como parte constitutiva do Brasil — não como exceção.

 

Lívia Louvel é economista e escreve semanalmente. Na coluna Perspectiva, traduz os movimentos de economia e sociedade em análises que geram valor e orientam decisões.

 

 

Por Jornal da República em 27/11/2025
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