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Uma denúncia publicada pelo jornal carioca Ultima Hora, em janeiro de 1963, tornou público o extermínio de “mendigos” por policiais do Serviço de Repressão à Mendicância (SRM), vinculado ao Departamento Estadual de Segurança Pública (DESP) da Guanabara, estado criado em 21 de abril de 1960
com a transferência da capital nacional para Brasília e que compreendia o
perímetro urbano da cidade do Rio de Janeiro. Olindina Alves Japiassu sobreviveu a uma tentativa de homicídio na ponte do rio da Guarda e denunciou
as arbitrariedades à imprensa, o que criou certo estigma na gestão do então governador Carlos Lacerda (1960-1965). O episódio ficou conhecido como “Operação mata-mendigos”, havendo a participação de sete indivíduos – entre policiais efetivos e emprestados para o SRM, seu chefe e motoristas – e um total de vinte vítimas, após confissão dos envolvidos.
A pelo termo nativo “mendigo” visa explicitar a construção do indivíduo como contraventor segundo o ordenamento jurídico da época, uma particularidade que não consegue ser devidamente sinalizada pelos termos “morador de rua” ou “pessoa em situação de rua”. Observe-se que a contravenção de mendicância fez parte da Lei de Contravenções Penais até 2009, e o agenciamento das violências aqui apresentadas por quadros da segurança pública reforça aspectos já adereçados por Michel Misse (1999, p.48) acerca da sujeição criminal, ou seja, da expectativa de que determinadas categorias de indivíduos “acusáveis” incorram em condutas atentatórias aos valores dominantes, sendo “legítimas” as diversas formas de violência legal e extralegal em sua contenção.
Curiosamente, a Secretaria de Serviços Sociais do Governo Carlos Lacerda à época, era uma mulher que havia sido vereadora e deputada estadual do então Estado da Guanabara, Sandra Cavalcanti. Sua passagem pelo cargo foi ruidosa: os antilacerdistas acusavam o governo de remover favelas sem nenhum cuidado para com o bem-estar social dos atingidos preocupando-se apenas em "higienizar" os morros da Zona Sul, área nobre da Guanabara. Logo surgiam denúncias de incêndios premeditados em barracos e de mendigos afogados no Rio da Guarda, acusações das quais Sandra Cavalcanti se defendia acusando os comunistas e brizolistas de propagarem tais rumores que, para ela, não passavam de calúnias.
Se é verdade, não ficou provado, mas o fato é que houve uma ordem do governo para “higienizar” a cidade para a visita da rainha da Inglaterra, embora a CPI, como todas em geral, não tivesse concluído pela morte dos miseráveis recolhidos e jogados nas águas do Rios Guandu e da Guarda.
Ademais, o problema da mendicância é, e sempre foi a falta de politicas públicas inclusivas, e na época se desenvolve num contexto mais amplo de expansão demográfica desordenada e acentuação das desigualdades sociais. Ao longo das décadas de 1950 e 1960, a cidade do Rio de Janeiro sofreu um intenso inchaço populacional, sobretudo em áreas periféricas. A população favelada dobrou nesse período, passando de 169.305 para 335.063 habitantes, chegando a representar cerca de 10% da população carioca. Tal inchaço deriva de grandes ondas migratórias, oriundas de diversas regiões do país, em busca de melhores condições de vida; mas a disparidade entre a oferta e a procura de empregos fez com que houvesse um aumento dos bolsões de pobreza urbana, fixando parte desses grupos populacionais em bairros e áreas periféricas da cidade ou municípios próximos (especialmente na Baixada Fluminense) (MOTTA, 2001, p.108-109; PERLMAN, 1977, p.92-95).
Entretanto, a análise cruzada destas fontes permite a compreensão da "Operação mata-mendigos" como a ação violenta de policiais do SRM, subordinado à Delegacia de Vigilância do Departamento Estadual de Segurança Pública, contra pessoas em situação de rua recolhidas no estado Guanabara entre os anos de 1962 e 1963. As primeiras irregularidades no órgão foram apontadas pelo Ultima Hora em agosto de 1962, que acusava o SRM de deportar moradores de rua da Guanabara para outras cidades fluminenses. Existia, de fato, um Serviço de Repressão à Mendicância (SEM), vinculada a Delegacia de Vigilância.
Passados mais de 60 anos, surge uma outra vereadora sugerindo a volta desse tratamento cruel e desumano contra os miseráveis que não possuem moradia e trabalho por falta de politicas públicas inclusivas, sugerindo que se matem os mendigos não de afogamento, mas de fome, eis sugere que não se dê comida e acolhimento a esses cidadãos abandonados pelo Município. Assim como a então Secretária Sandra Cavalcanti, que respondeu as criticas acusando de comunistas e brizolistas, a sua nova reencarnação ao invés de apresentar seus projetos de inclusão social, já que não fez nenhum, resolve agredir seu crítico e ex-eleitor com falsas acusações.
Esse discurso da extrema direita é milimétricamente pensado para legitimar o genocídio, lá e cá. Segundo o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), entre janeiro de 2007 e outubro de 2025, houve 707 operações policiais que resultaram em mortes na Região Metropolitana do Rio, com 2905 vítimas civis e 31 policiais. Matar a população periférica e os moradores de rua estão intimamente interligados como estratégia para essa política de extermínio genocida. Pouquíssimas lágrimas são derramadas pelas vítimas do Estado, pois elas são, afinal, objetos sem contexto e sem história. Mesmo quando inocentes.
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