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Era quase uma da manhã. Eu já tinha decidido dormir quando, no automático, abri o X, o antigo Twitter, “só para ver as últimas”. Entre um post e outro, apareceu a piada de um estrangeiro sobre Ronaldinho Gaúcho: passaporte espanhol tomado, passaporte brasileiro tomado, prisão no Paraguai com documento falso – tudo costurado pela ironia de que ele teria “dedicação exemplar” a não pagar imposto de renda.

Mais do que o meme, o que me incomodou foi outra coisa: a reação de boa parte dos brasileiros. Risos, defesas apaixonadas, gente dizendo que “ele já deu muita alegria ao povo” e que “problema com imposto todo mundo tem”. A mesma indulgência que não existe para o pequeno comerciante, o autônomo ou o assalariado que erra uma vírgula na declaração.
Ali, quase de madrugada, me veio uma pergunta incômoda: *por que nossa autoestima coletiva é tão baixa a ponto de aceitarmos que quem mais ganha possa contribuir menos?*
No fundo, sabemos como esse jogo funciona. Em países desiguais, alguns poucos são “sorteados” pela combinação de dom excepcional, oportunidades e muita exposição. Um craque do futebol, uma cantora, um influenciador: rapidamente deixam de ser apenas pessoas talentosas e viram algo próximo de deuses laicos.
E, como em qualquer mitologia, o deus só existe enquanto houver fiéis.
No ultraliberalismo em que tudo vira mercadoria, a idolatria é um excelente modelo de negócios. Cada vez que alguém compra uma camisa, clica num vídeo, compartilha uma foto, comenta um escândalo ou compra um produto licenciado, está alimentando o capital simbólico e financeiro desse ídolo. Não é só o salário milionário no clube. É participação em publicidade, direitos de imagem, bônus, contratos paralelos.
Em termos bem simples: *o tempo e a atenção dos fãs viram dinheiro.*
É por isso que, quando vemos um post sobre o ídolo “criando problemas” com o fisco, a pergunta séria não deveria ser “coitado, deixem o cara em paz”, mas sim:
se somos nós que ajudamos a construir essa fortuna, *por que aceitamos que ele devolva tão pouco à sociedade – a ponto de, em alguns casos, tentar devolver menos do que a lei exige?*
Não se trata de demonizar o sucesso. É justo que alguém com um talento raro ganhe muito bem pelo que faz. O problema começa quando naturalizamos a ideia de que esses mesmos privilegiados têm direito a um tipo de “zona de isenção moral” – um território em que erros graves são relativizados em nome das alegrias que já nos proporcionaram.
A estrutura é conhecida:
* o trabalhador comum tem imposto descontado na fonte, sem discussão;
* o pequeno empresário paga tributos pesados para manter a porta aberta;
* mas, quando o ídolo bilionário é acusado de sonegação ou de manobras para esconder renda, parte da torcida corre para defendê-lo.
É uma espécie de servidão voluntária: *aceitamos que quem está com o “burro na sombra” há três gerações contribua proporcionalmente menos do que nós mesmos*, os mortais anônimos que compram os produtos, lotam estádios, alimentam algoritmos e audiência.
Há também a grande ilusão da meritocracia pop: a promessa permanente de que “qualquer um pode chegar lá”. É a versão motivacional da velha história: se você acordar às 5h da manhã, trabalhar duro, “pensar como vencedor” e nunca desistir, ficará milionário.
Esse discurso cria uma identificação estranha com o ídolo. Criticar o craque que ganha milhões e não quer pagar imposto parece, para muitos, criticar o “eu do futuro” que eles sonham ser. Então a lógica fica assim: “se um dia eu chegar lá, também vou querer pagar menos imposto; logo, é melhor defender quem já está nesse lugar”.
Só que há um detalhe incômodo: *estatística*. A quantidade de pessoas no topo é mínima. Não há cadeiras para todo mundo. A maior parte de nós nunca será milionária – e está tudo bem. O problema é que, enquanto acreditamos cegamente nesse sonho, acabamos defendendo interesses que não são nossos.
Parte dessa confusão vem de uma educação que nos ensinou o que chamo de “matemática burra”: contas decoradas, fórmulas soltas, sem ligação com a vida real.
Aprendemos a resolver equações, mas não a conectar números com consequências sociais.
Quando vemos a manchete “famoso deixa de declarar milhões ao fisco”, raramente traduzimos isso em quantos leitos de UTI, quantas escolas, quantos remédios na farmácia básica isso poderia significar. Ou impostos menores para a classe média, escolas públicas de qualidade etc. O desvio parece apenas “coisa de celebridade com problema com a Receita”, e não uma forma indireta de roubar futuro de quem mais precisa.
Se associássemos cada cifra desviada a rostos concretos – a fila do SUS, a escola sem professor, a rua sem saneamento – talvez a nossa tolerância fosse bem menor.
Há, por fim, um dano mais silencioso: o modo como essa idolatria nos diminui.
Quando colocamos alguém num pedestal absoluto, mandamos para nós mesmos a mensagem de que somos pequenos, pouco importantes, substituíveis. Como se a vida de um astro valesse infinitamente mais do que a soma das vidas anônimas que o sustentam.
Isso é perigoso porque rouba algo essencial: a consciência de que *todos têm valor*.
Alguns descobrem cedo seus talentos e encontram espaço para florescer. Outros nunca descobrem. Outros até descobrem, mas não conseguem se encaixar no mercado. Nada disso nos torna menos dignos ou menos merecedores de uma sociedade justa.
No entanto, o sistema escolhe alguns poucos para serem vitrines de um sonho coletivo – e então vende esse sonho de volta para nós em forma de produtos, serviços, curtidas. Quando além de comprar, ainda aceitamos que esses escolhidos não cumpram o mínimo de responsabilidade com o coletivo, o que está em jogo não é só o imposto: é a nossa própria dignidade.
O caso Ronaldinho é só um gancho; poderia ser qualquer outro nome nas manchetes. O ponto não é o personagem, mas o mecanismo.
Enquanto:
* aceitarmos que os mais ricos possam driblar regras com as quais nós não sonharíamos brincar;
* confundirmos talento com direito de estar acima da lei;
* e tratarmos críticas a privilégios como “inveja” ou “falta de gratidão”,
continuaremos sendo fiéis sustentando deuses, e não cidadãos exigindo equidade.
Talvez o gesto mais simples – e mais revolucionário – seja lembrar, toda vez que um escândalo desses aparecer na tela:
> **sou eu, com meu tempo, meu trabalho e meu dinheiro, que ajudo a construir esse pedestal.
> Então tenho o direito – e o dever – de cobrar responsabilidade de quem está lá em cima.**
Afinal, o show pode até ser deles.
Mas sem a plateia, não há espetáculo. E sem imposto, não há Estado que cuide minimamente da própria plateia.
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