Uma semana depois: o que a 'megaoperação' no Rio ensinou — e o que o Estado precisa fazer de verdade

Uma semana depois: o que a 'megaoperação' no Rio ensinou — e o que o Estado precisa fazer de verdade

Assino este texto com uma convicção simples: segurança pública não se faz com espetáculo nem com chacina. Faz-se com política de Estado, inteligência e oportunidade real para quem mora nas favelas.

1) O fio histórico: a marginalização do povo negro não começou ontem Desde a formação do Estado brasileiro, a população negra foi tratada como alvo de controle e não como sujeito de direitos. Isso não é “opinião”; é história. Até hoje carregamos uma herança de instituições que nasceram para vigiar, punir e conter os descendentes de escravizados, e muitas práticas policiais repetem essa lógica. Como lembrou o ex-chefe da Polícia Civil do RJ, Hélio Luz, a polícia, desde 1808, foi estruturada para “controle social” dos escravizados — uma função que, de formas atualizadas, ainda recai sobre os pobres e pretos das periferias.

2) Uma semana depois: cadê o Estado que não seja só fuzil?

Passados sete dias da operação, o que ficou para as famílias da Penha e do Alemão? Luto, medo e a sensação de ausência do Estado que presta serviço. Nada no noticiário predominante sobre a semana seguinte fala de mutirão de saúde, força-tarefa de emprego, recomposição de escolas, creches, cultura, esporte e assistência econômica. O foco foi a letalidade sem precedentes e a disputa política — não um plano de reconstrução de vidas. Especialistas como Hélio Luz são claros: sem melhorar a condição de vida, daqui a 15 anos estaremos no mesmo lugar.

3) ONG não é substituto de projeto de sociedade

Há organizações sérias nas favelas, mas a verdade incômoda é que, quando a ação pública some, o vácuo é preenchido por iniciativas assistenciais que aliviam a dor do dia, sem tocar a ferida estrutural: trabalho digno, renda, moradia, transporte, cultura e participação política. Isso não é culpa das ONGs; é limite do modelo. Sem consciência de classe, sem organização popular e sem Estado presente com direitos, o assistencialismo vira paliativo — e o capitalismo periférico segue produzindo e policiando a pobreza. Os próprios diagnósticos sobre “controle social” e desigualdade, citados por Hélio Luz, reforçam essa crítica.

4) Trinta anos de campanha com “lei e bala” — e o problema só se agrava.

De Moreira Franco para cá, todos os governadores do RJ foram eleitos prometendo resolver a segurança pública com a mesma fórmula: confronto ostensivo, operação midiática e promessa de “retomada”. O resultado está à vista: mais mortes, mais medo e nenhuma paz duradoura. A operação de 28/10 foi a mais letal da história do estado, com saldo que supera a chacina do Carandiru. É a prova trágica de que essa estratégia faliu. -O que funciona? Política de Estado em três frentes, simultâneas e permanentes: Direitos e oportunidades (educação integral, saúde, primeira infância, esporte, cultura, emprego e renda nas favelas); Inteligência e investigação (menos incursão punitiva, mais trabalho técnico); Estrangulamento financeiro do crime (prender cérebros e contabilidade do tráfico, bloquear fluxos e laranjas).

Até o debate em Brasília já aponta nessa direção: “acertar a espinha dorsal” do tráfico, com coordenação, inteligência e ataque às bases financeiras — não matar pobre em operação pirotécnica. E os dados de opinião pública mostram que o povo quer investigação e prisão, não carnificina: 77% dos fluminenses preferem investigar e prender a “matar criminosos”, segundo Datafolha citada na análise do Cafezinho; e a própria leitura da Quaest revela um eleitorado dividido sobre “sucesso” da operação e uma maioria que, apesar de apoiar ações, rejeita a barbárie e apoia controles como câmeras corporais (88%).

5) O que os números mostram — e como ler isso com responsabilidade

Sim, a Quaest registrou que 64% dos moradores do RJ aprovaram a megaoperação — um número que precisa ser compreendido no calor da comoção e do medo real que o crime impõe. A mesma pesquisa, porém, traz frestas de esperança e um mapa para agir: as mulheres desaprovam mais a operação e veem menos segurança depois dela; cresce o desejo por soluções não letais e por policiamento com controle e transparência (como câmeras); e o eleitorado está farto de promessas de “guerra” que só multiplicam funerais. Política pública tem de ler o conjunto, não o mancheteiro.

 

Conclusão: chega de administrar cadáveres O Rio não precisa de mais “operações”; precisa de projeto. Um projeto que devolva ao Estado a primazia sobre o território com escola, posto de saúde, CRAS, CEU, biblioteca, arena esportiva, internet, iluminação, habitação, emprego, cultura e crédito produtivo — todo dia, não só no dia da foto. E que profissionalize a segurança: inteligência, investigação, cooperação federativa, rastreamento financeiro, controle externo e respeito absoluto à lei. A morte jamais será política de segurança. O caminho é vida com direitos — e polícia com cérebro, não com licença para matar.

Carlos Santana Ex-deputado federal (PT-RJ)

Por Jornal da República em 05/11/2025
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