A caixa-preta da Turisangra e da Capitania dos Portos de Angra dos Reis que gera mortes no mar e destrói o meio ambiente de Angra

Por que continuam a desobedecerem a decisões judiciais?

A caixa-preta da Turisangra e da Capitania dos Portos de Angra dos Reis que gera mortes no mar e destrói o meio ambiente de Angra

Uma sentença histórica  e uma orla que continua fora da lei

Em 17 de outubro de 2025, a Justiça Federal em Angra dos Reis julgou parcialmente procedente a Ação Civil Pública nº 5001921-98.2023.4.02.5111, proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) contra a União e o Município de Angra dos Reis. A decisão reconhece que há omissão da Marinha (União) e da Prefeitura na proteção ambiental e na segurança da navegação na Enseada da Biscaia.

A juíza federal Luciana Cunha Villar determinou, entre outras medidas, que:

• O Município elabore e implemente, em até 12 meses, o Plano Municipal de Gerenciamento Costeiro, instale placas informativas na Praia da Biscaia e mantenha fiscalização ostensiva em fins de semana e feriados, com relatórios trimestrais ao MPF e à Justiça;

• A União, por meio da Capitania dos Portos, intensifique as ações de fiscalização na enseada e apresente relatórios semestrais de suas operações;

• Ambos elaborem um plano integrado de educação ambiental voltado a moradores e turistas.

A mesma ação já tinha garantido, em decisão liminar de 2023 mantida pelo TRF-2, a suspensão das atividades irregulares de escunas, lanchas turísticas, catamarãs, saveiros e jet skis na Biscaia, sob pena de multa diária.

No papel, o quadro está claro: a Justiça reconhece a omissão do poder público e determina um novo padrão de fiscalização. Na prática, porém, moradores afirmam que quase nada mudou.

O dia a dia na Biscaia e no Objetivo em no restante da Ponta Leste: vídeos escancaram o descumprimento

Apesar da liminar e agora da sentença, a rotina na Biscaia e em praias vizinhas, como a Praia do Objetivo, continua marcada por:

• Lanchas e escunas operando em área de banho, muitas vezes a poucos metros da areia;

• Jet skis em alta velocidade, cruzando rotas de banho e de caiaques;

• Som em volume altíssimo, com badernas em embarcações de passeio que funcionam como “boates flutuantes”;

• Oferta de passeios com churrasco e bebida alcoólica em áreas de preservação – prática proibida – amplamente divulgada nas redes sociais pelos próprios operadores;

• Embarcações apoitadas rente a faixas de areia e costões nas ilhas.

Moradores e veranistas reúnem há anos vídeos e fotos que mostram dezenas de infrações diárias, em especial nos fins de semana ensolarados e feriados prolongados. A percepção é de que “não há mais lei no mar de Angra” – uma zona cinzenta em que as normas existem, mas são sistematicamente ignoradas por parte do setor privado e, por omissão, pelo poder público.

As reclamações se repetem: a Capitania dos Portos, segundo relatos, fiscaliza em horários de menor movimento e praticamente desaparece da Biscaia nos momentos de pico de embarque e desembarque, quando as praias e ilhas da região recebem o grosso dos turistas. Na maioria das denúncias, as mesmas embarcações aparecem reincidindo, semana após semana, sem que a comunidade tenha acesso às sanções aplicadas ou ao desfecho dos processos.

Da parte da Turisangra – Fundação de Turismo de Angra dos Reis –, que deveria agir como filtro e regulador da atividade turística, moradores afirmam que ofícios com vídeos e fotos anexados raramente recebem respostas claras: não se informa se há abertura de processo administrativo, suspensão ou cassação de cadastros turísticos, nem quais embarcações foram efetivamente punidas.

Nova lancha, velhos problemas.

Durante anos, a justificativa recorrente da Marinha para a baixa presença na Enseada da Biscaia foi a falta de meios: “só temos uma embarcação para cobrir toda a Baía da Ilha Grande”, diziam oficiais a moradores.

Em 2025, porém, a Delegacia da Capitania dos Portos em Angra dos Reis recebeu uma Lancha de Inspeção Naval batizada “Atlântico Sul”, dentro do Projeto “Costa Verde”, anunciado pela própria Marinha como reforço para fiscalizar as Baías da Ilha Grande, Sepetiba e Paraty. Em publicações oficiais e em redes sociais de marinas locais, a embarcação aparece como símbolo do reforço à segurança da navegação e do patrulhamento naval na região, inclusive com a informação de que teria sido doada após apreensão pela Receita Federal.

Moradores, no entanto, questionam a estratégia: em vez de barcos menores, ágeis e baratos, capazes de entrar rapidamente em enseadas rasas como a Biscaia, optou-se por uma lancha de maior porte, que precisa cobrir uma extensa faixa de costa e teria alto custo de operação. Na prática, dizem, o cotidiano da fiscalização na enseada pouco se alterou – a presença ostensiva em horários críticos continua rara, e a sensação de impunidade, intacta.

O contraste é ainda mais evidente quando se compara Angra com outros polos de turismo náutico, como certos trechos de Santa Catarina, onde proprietários de embarcações relatam fiscalizações frequentes e multas pesadas, criando uma cultura de respeito à Capitania. Aqui, quem respeita as normas se sente ingênuo; quem desrespeita, protegido pela inércia estatal, relatam denunciantes.

Turisangra: a fundação que deveria organizar o turismo, mas virou uma incógnita

A Turisangra, autarquia municipal responsável pelo turismo, é peça central desse xadrez. A Lei Municipal nº 3.830/2018, que dispõe sobre o ordenamento da atividade náutica no município, estabelece regras para escunas, saveiros, lanchas, jet skis, táxis náuticos e demais embarcações, estipulando procedimentos para cadastro, licenciamento e operação. 

Essa legislação foi apresentada pela própria Prefeitura como instrumento para “garantir o ordenamento do turismo náutico em Angra”, autorizada por Convenio com a União Federal. É ela que, entre outros pontos, restringe a venda de passeios a guichês públicos autorizados, justamente para evitar a proliferação de balcões clandestinos e a captura privada de áreas públicas.

Hoje, a fundação é presidida por João Willy Seixas Peixoto, que já ocupava o mesmo cargo em gestões anteriores, inclusive durante a reabertura do turismo na Ilha Grande após a pandemia, quando aparecia em matérias oficiais como presidente da Turisangra.

Na prática, porém, moradores relatam um abismo entre o discurso oficial e a execução:

• Denúncias com vídeos e fotos são protocoladas, mas raramente se sabe se houve abertura de processo administrativo;

• Embarcações denunciadas seguem operando nos mesmos pontos, em aparente situação de reincidência;

• Não há transparência ativa sobre quais empresas estão regulares, quais foram punidas e por quê.

O resultado é a percepção de que a Turisangra opera como uma caixa-preta: controla cadastros, emite vouchers, participa de eventos para promover o destino, mas não dá respostas concretas sobre como lida com operadores que tratam a legislação como mera “sugestão”.

Uma baía inteira em área protegida – mas sem proteção efetiva

A contradição fica ainda mais gritante quando se olha o mapa ambiental. A região de Angra dos Reis está praticamente toda coberta por um mosaico de unidades de conservação:

• A Área de Proteção Ambiental (APA) de Tamoios, que abrange tanto a parte continental quanto todas as ilhas do município situadas nas bacias da Ilha Grande, Ribeira e Jacuacanga;

• A Estação Ecológica (ESEC) de Tamoios, unidade de proteção integral que, junto com a APA, completa um verdadeiro “arco de proteção” sobre toda a Baía da Ilha Grande, incluindo ecossistemas como manguezais, restingas e costões rochosos.

Essas unidades se inserem no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), criado pela Lei Federal nº 9.985/2000, que estabelece critérios para criação e gestão das áreas protegidas.

Ao mesmo tempo, o litoral brasileiro é regido por um conjunto de normas específicas:

• A Lei nº 9.537/1997 (LESTA), que disciplina a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional;

• O Regulamento de Segurança do Tráfego Aquaviário (RLESTA), aprovado pelo Decreto nº 2.596/1998, que detalha deveres da autoridade marítima e dos condutores de embarcações;

• A Lei nº 7.661/1988, que institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC) e obriga estados e municípios a planejar o uso da zona costeira de forma integrada com a política ambiental.

É justamente essa teia de normas que a sentença da Justiça Federal cobra que sejam efetivadas em Angra: a União, pela via da Marinha, deve garantir a segurança da navegação; o Município deve ordenar o uso das praias e da orla, inclusive com placas, fiscalização contínua, plano de gerenciamento costeiro e aplicação da Lei 3.830/2018.

Na prática, porém, a comunidade local vê barcos e jet skis rasgando a lâmina d’água de uma área ambientalmente sensível como se fosse um parque de diversões sem regra.

Ruído, fauna espantada e veranistas acordando com som de motor

A Enseada da Biscaia e o entorno da APA Tamoios formam uma espécie de “anfiteatro sonoro”: encostas íngremes cercam o mar, fazendo com que qualquer som – principalmente grave de sistemas de som potentes – se propague de forma amplificada.

O que antes era um cenário de pássaros e mar calmo ao amanhecer virou, segundo moradores, um corredor de barulho:

• motores em marcha lenta ou acelerada durante embarque e desembarque na praia, ou na navegação pela costa vindo do Objetivo;

• caixas de som portáteis e sistemas de som de grande potência a bordo, muitas vezes em volumes incompatíveis com uma área de preservação, e com músicas agitadas, como Funk ou Pisadinha;

• eco sonoro batendo nos morros e se espalhando por toda a enseada.

Além do impacto direto na qualidade de vida de quem mora e passa férias na região, biólogos alertam – em estudos sobre áreas semelhantes – para os efeitos do ruído intenso sobre aves, peixes e mamíferos marinhos, que podem ter rotas de alimentação e reprodução alteradas ou abandonadas.

Hoje as aves cantam antes das seis da manha. Que antes cantavam até as 10, segundo moradores. E volta e meia aparecem animais marinhos mortos por embarcações, como tartarugas, aumentando a incidência ano a ano. 

Transparência zero: denúncias sem acompanhamento

Um ponto comum entre denunciantes é a falta de transparência:

• Na Capitania, moradores relatam que, ao solicitar informações sobre o andamento das denúncias (com data, hora, nome e número das embarcações), recebem respostas genéricas, com a justificativa de que se trata de “processo militar” ou “informação restrita”;

• Na Turisangra, quando cobram se determinada empresa foi advertida, suspensa ou descadastrada, ouvem que o caso foi “encaminhado ao setor de fiscalização”, sem retorno posterior.

Essa opacidade impede a sociedade de verificar se a reincidência de determinadas embarcações é consequência de uma fiscalização branda ou, pior, de punições que nunca chegam. Se a liminar da Justiça estivesse sendo cumprida com rigor, é razoável esperar que barcos flagrados repetidas vezes em infração já não estivessem operando livremente na mesma área.

O que dizem as autoridades – e o que a Justiça respondeu

Nos autos da ação, a União argumentou que o ordenamento das praias e o gerenciamento costeiro são tarefas primariamente municipais, afirmando que a Capitania dos Portos realiza fiscalizações regulares. O Município, por sua vez, alegou que possui legislação ambiental robusta, que fiscaliza a enseada em parceria com órgãos estaduais e que o Plano Municipal de Gerenciamento Costeiro não seria obrigatório.

A juíza rejeitou essas teses:

• reconheceu que há competência concorrente entre União e Município na proteção ambiental e na segurança da navegação;

• identificou omissão administrativa parcial da União, pela insuficiência das ações da Capitania frente às irregularidades comprovadas;

• apontou omissão clara do Município, por não ter elaborado o Plano Municipal de Gerenciamento Costeiro previsto no próprio Código Ambiental local, além de falhar na sinalização adequada e na atuação preventiva na Biscaia.

Ou seja: não há mais espaço, do ponto de vista jurídico, para o “jogo de empurra” entre prefeitura e Marinha. A sentença escancara a responsabilidade compartilhada – e a necessidade de ações concretas, coordenadas e transparentes.

Sem investigação séria, o turismo predatório continuará mandando

O quadro que se desenha hoje na Biscaia, na Praia do Objetivo ou em toda a Ponta Leste é o de um turismo predatório: altamente lucrativo para poucos, devastador para o ambiente e para a segurança coletiva. E a qualidade do turista que a frequenta decaiu substancialmente. Hoje é comum gritarias e todo o tipo de baderna nas praias o dia inteiro inclusive dias de semana, e com pouca frequência. Quando não chega à madrugada. Caixas de som sobre a areia e pouca fiscalização. 

Não há uso sustentável mais, ao ponto de moradores conscientes de toda a região dizerem que a Praia da Biscaia virou uma “praia de favela”, devido aos comportamentos de muitos usuários, inibindo antigos de frequentar. Esgoto sendo jorrado por bar sobre a faixa de areia e denunciado até na PF e nada acontece. Esgoto este que há sete anos fechado pela mesma PF a mando do MPF e reaberto descaradamente por dono de pastelaria e do bar na época.

Na mesma sentença a Juíza manda a prefeitura cuidar do ordenamento faixa de areia. A mesma autorizou uso desta para bares e restaurantes. Só tem um problema que foi identificado na Ação Civil Pública: Não há nem Estudo quanto mais planejamento do uso sustentável para embasar tal liberação. E isso é obrigatório haja vista o convenio entre o município e a União, cedendo esta a gestão e fiscalização para o ente municipal, ou seja, são condições que não foram obedecidas. Enquanto não se aplicar legislação penal punitiva, pois isso tudo são gravíssimos crimes contra o meio ambiente, nada mudará. O MP não viu que atuar somente na área Civil não resolve? 

Dissuasão só será realidade se regras forem cumpridas. E consciência tais infratores não tem; onde esta as penas duras da lei? 

Sem que o Ministério Público Federal e os órgãos de controle aprofundem:

• Por que a liminar e agora a sentença vêm sendo descumpridas na prática;

• Por que operadores reincidentes continuam em atividade, mesmo diante de farta prova em fotos e vídeos;

• Como a Turisangra controla e fiscaliza seus cadastros e vouchers de passeio;

• Qual o real alcance da nova lancha da Capitania nas enseadas mais conflituosas, como Biscaia e Objetivo;

Indícios substanciais de envolvimento político existem nas denúncias efetivadas, mas porque não é investigado pelo MPF, sendo que as primeiras denúncias foram efetivadas há mais de 10 anos? E o inquérito civil que durou mais de cinco anos, nunca cumprido acordos entre MPF e as outras instituições durante aquele. 

E o mais chocante, é que durante anos o MPRJ, INEA, IMAAR (Instituto do Meio ambiente municipal), arquivaram todas as denuncias nesses últimos 10 anos. Mesmo com documentos comprobatórios consistentes. Pior foi o Ministério Público Militar, que também arquivou com fundamentos mais absurdos possíveis: acatou narrativas de Delegados da Capitania contra provas incontestes nos autos. 

A tendência é que acidentes com feridos e mortes no mar se tornem cada vez menos “casos isolados” e mais uma consequência anunciada de um sistema que escolheu fechar os olhos. Uma turismóloga angrense que defendia o turismo sustentável morreu este ano em acidente marítimo ocasionado por embarcação turística descontrolada, ou seja, evitável. E muita gente já se esqueceu. Virou estatística. Muitos lucram, inclusive políticos. 

Angra dos Reis é, simultaneamente, um dos cenários mais belos do litoral brasileiro e uma das regiões com maior densidade de unidades de conservação marinhas e costeiras. Transformá-la em “terra sem lei e mar sem lei” não é destino: é escolha política – e essa escolha, agora, está documentada em sentenças judiciais, vídeos de moradores e no silêncio das instituições que deveriam proteger a vida e o meio ambiente.

Por Jornal da República em 22/11/2025
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