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A rotina em dois dos principais bairros do subúrbio da Zona Norte do Rio tem sido marcada pelo medo e interrupção da vida cotidiana. Vila da Penha, Vila Kosmos, Penha Circular e Vicente de Carvalho, conhecidos por seu comércio ativo e localização estratégica, entre grandes vias como as avenidas Vicente de Carvalho e Meriti, vivem uma escalada de confrontos armados que levaram comerciantes a fecharem as portas e moradores a reverem hábitos básicos, como sair para trabalhar ou levar filhos à escola.
Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), a área do 41º BPM, responsável pelo policiamento desses bairros e de outros como Irajá, Colégio, Pavuna e Anchieta, registrou um aumento de 31,6% na letalidade violenta no primeiro semestre de 2025 — foram 100 casos entre janeiro e junho deste ano, contra 76 no mesmo período de 2024. Esse indicador inclui homicídios dolosos, mortes por intervenção de agentes do Estado, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte.
Apesar da sensação de que a violência chegou “de repente”, relatos indicam um processo gradual de reocupação territorial por grupos armados, com episódios mais intensos desde o fim de 2024. O motivo? A guerra entre duas facções que disputam espaço por toda a capital: Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro.
“Eu morava em uma rua próxima ao Morro do Juramento, dava para escutar os tiros a qualquer hora do dia. Ficava imaginando quando um deles ia entrar pela janela de casa. Por fim, achei que o melhor era juntar minhas coisas e procurar outro lugar para morar”, contou uma moradora que, por segurança, preferiu manter o anonimato.
Tiroteios diários, cidade parada
De acordo com a plataforma Fogo Cruzado, os bairros têm figurado entre os mais mencionados em alertas de tiroteio na Zona Norte em 2025. Para comerciantes da região, os dados prejudicam as vendas e o horário de funcionamento das lojas, que veem o faturamento despencar.
“Se algum deles (bandido) morrer, mandam fechar tudo. Se tem operação, a gente fica com medo. Eles ditam as regras e ai de quem não seguir. Todo dia é um filme de terror, evitamos até deixar só uma pessoa na loja trabalhando sozinha. Só esse ano, o faturamento caiu em 30%”, contou um funcionário de um estabelecimento comercial da região.
Os impactos aparecem não só nos relatos, mas em números também: de janeiro a junho deste ano, a região contabilizou 31 assaltos a estabelecimentos comerciais, segundo o ISP.
Entre grupos de moradores, circulou recentemente a informação de que a rede de supermercados Atacadão, localizada próximo à estação de metrô de Vicente de Carvalho, fecharia por conta da violência. Além dela, citam também a unidade da pizzaria Parmê, próximo à estação do BRT, e a loja da concessionária Real Veículos Volkswagen, que expôs um cartaz na fachada comunicando o fechamento por “força maior”.
A reportagem tentou contato com os estabelecimentos, mas recebeu retorno apenas do Atacadão, que desmentiu a mensagem e reforçou que a unidade seguirá operando normalmente.
Palco de expansão territorial
Especialistas em segurança pública avaliam que esses grupos disputam não só o tráfico de drogas, mas também mercados ilegais como transporte alternativo, venda de gás, internet clandestina e cobrança de taxas de proteção.
“Os impactos do controle territorial armado se fazem em diversas dimensões da vida, do cotidiano dos moradores. Há impactos que são econômicos, pela tendência monopolista de atuação dos grupos armados nesses territórios. Há impactos que são políticos, no sentido da interferência nos processos de associativismo, de representação política, e até de eleições. E há impactos na regulação das condutas cotidianas, barricadas, toque de recolher…”, explica Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Para o advogado criminalista Marcos Espínola, o resultado que a insegurança provoca na economia local e no tecido social dos bairros afetados é o abandono.
“Gera prejuízos irreparáveis para estes bairros, com a desvalorização imobiliária, a evasão de empresas e comércios e, consequentemente, desemprego, miséria, fome e violência. Bairros tradicionais do subúrbio carioca estão irreconhecíveis sob o domínio das organizações criminosas. Onde o Estado não se faz presente, as organizações criminosas ocupam criando um estado paralelo”, pontua.
‘Ausência de tudo que faz uma vida digna‘
O sociólogo Rafael Mello, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca que a escalada da violência nos bairros é um claro sinal de que o Estado, na prática, abandonou essas áreas.
“Não é só falta de polícia. É a ausência de tudo que faz uma vida digna: escolas que fecham por tiroteio, como às 19 que pararam no Complexo da Penha, que faz divisa com esses bairros. É a saúde que não chega, com clínicas afetadas e gente sem atendimento. É o transporte que para, com ônibus desviados ou até tomados para barricadas, um prejuízo enorme para quem precisa se locomover. Mesmo com bairros como a Vila da Penha tendo boa infraestrutura e um IDH relativamente alto, a violência mostra que o problema é mais fundo: o poder público não garante o básico, e esse vácuo é um convite para a desordem e o crime”, enumera Mello.
Ele corrobora com o dito por Espínola: “Esses grupos agem como ‘empresários’ da violência, controlando tudo: do gás à internet, do transporte à venda de imóveis. Eles impõem suas regras, cobram taxas e usam a força para manter o controle. É como se o Estado, ao invés de proteger, deixasse um vácuo que é preenchido por quem tem a força”.
Existem soluções?
Para Nelson Andrade, ex- tutor da Secretaria Nacional de Segurança Pública, a curto prazo, não há soluções. No entanto, ele destaca outros pontos que podem ser levados em consideração.
“Acho que uma boa opção seria rever as Unidade de Polícia Pacificadora, que chegaram a dar certo, mas o projeto teve problemas de manutenção, principalmente de viaturas e estruturas nas comunidades. Uma polícia de proximidade que atue junto à comunidade, que saiba diferenciar o morador e trabalhador do traficante”, diz.
Outra ponderação do especialista são as operações policiais que, se mal planejadas, tornam-se desnecessárias.
“Operações policiais sem inteligência são apenas ‘enxuga gelo’, só trazem mais violência e não retomam territórios perdidos. Os governos têm que ter políticas públicas voltadas à ocupação e permanência nas áreas de conflito”, conclui.
Espínola concorda: “Em princípio só há um caminho, que é a intensificação de um policiamento ostensivo. Vale ressaltar que não se resolve um problema de dois ou três bairros, a uma necessidade de reconfigurar a segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, levando em consideração as demais secretarias que devem participar, como as secretarias de educação, saúde, assistência social e habitação, junto com cursos profissionalizantes”.
O que diz a Polícia Militar?
A corporação informou que o 41º BPM (Irajá), que monitora a área, realizou mais de 350 prisões em flagrante em 2025. O policiamento na região é feito com o emprego de setores de rádio patrulha, motopatrulhas, viaturas posicionadas em pontos estratégicos e equipes do Regime Adicional de Serviço (RAS), atuando 24h por dia e intensificando as abordagens e revistas.
“Vale frisar que a SEPM sempre ressalta a importância do acionamento de nossas equipes para casos imediatos através de nossa Central 190 e do App RJ 190, assim como a importância dos registros dos crimes nas delegacias, o que proporciona um direcionamento das análises das manchas criminais mais precisas e efetivas”, diz a nota.
Via Agenda Do Poder
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