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Enquanto os céus do Oriente Médio voltam a se incendiar com mísseis e drones, uma figura reaparece entre as chamas: Donald Trump. Se ainda havia alguma dúvida de que o mundo saiu dos trilhos, o confronto direto entre Israel e Irã tratou de eliminá-la. O Oriente Médio retorna ao centro do caos — como se algum dia tivesse deixado esse posto — e o nome por trás das explosões, mesmo que tente se esconder no Salão Oval, é um velho conhecido. No seu segundo mandato, Trump faz o que sempre soube: atiça incêndios com a mesma naturalidade com que publica “verdades alternativas” no X (ex-Twitter).
Só que agora ele não atiça apenas com palavras. Os Estados Unidos entraram de vez na guerra ao bombardear, em ataques cirúrgicos e amplamente televisionados, as três principais usinas de enriquecimento de urânio do Irã. O gesto, claro, foi vendido como “prevenção estratégica”, mas carrega o selo inconfundível da diplomacia trumpista: ataque primeiro, explique depois (se sobrar algo para explicar). O mundo segura a respiração enquanto Washington joga gasolina sobre um barril que já vinha fumegando. E Netanyahu, ao ver a superpotência jogando a seu lado, sabe que pode ir além — afinal, o titã americano saiu das sombras e entrou oficialmente no palco.
O enredo, porém, começou antes. O prólogo foi a brutal invasão da Faixa de Gaza, inicialmente justificada como resposta aos ataques do Hamas, mas rapidamente convertida em massacre prolongado de civis palestinos. Com o aval ora silencioso, ora entusiasmado de Washington, Israel reduziu bairros inteiros a escombros sob o pretexto de “eliminar ameaças”. A guerra deixou de ser contra o Hamas faz tempo; tornou?se guerra contra a própria ideia de resistência — e, por extensão, de dignidade.
As raízes do conflito, no entanto, não brotaram ontem — nem anteontem. São milenares, com DNA bíblico e tempero geopolítico. Tudo começa, como quase tudo no Oriente Médio, com Abraão. Sim, o mesmo patriarca que as três grandes religiões monoteístas reivindicam como ancestral comum. De um lado, Isaque; do outro, Ismael — dois irmãos, dois destinos, e uma herança divina que parece ter vindo sem escritura registrada. A promessa de Deus, feita a Abraão, ecoa até hoje como cláusula pétrea em disputas territoriais. Jerusalém, cidade de três fés e nenhuma paz duradoura, tornou-se o epicentro dessa herança conflituosa. Séculos depois, com o colapso do Império Otomano e o mandato britânico, a confusão ganhou fardas modernas e mapas com linhas tortas. Em 1948, veio a criação do Estado de Israel — e junto dela, uma longa sequência de guerras, êxodos forçados e ressentimentos históricos. Para o mundo islâmico, a causa palestina virou símbolo de resistência. Para Israel, qualquer crítica vira antissemitismo. E o que era uma promessa divina virou, para muitos, uma terra arrasada. A tragédia, como sempre, é metade geopolítica, metade metafísica — e, para piorar, inteiramente real.
Netanyahu, sitiado internamente por protestos e escândalos, encontrou em Trump um aliado perfeito: ambos sabem que, em tempos de baixa popularidade, nada desvia mais a atenção do que uma boa guerra. E o Irã, com seu perfil de vilão milenar, ajuda. Teerã joga xadrez de longo prazo com peças assimétricas — Hezbollah no Líbano, houthis no Iêmen, milícias no Iraque — e ninguém que entenda minimamente de geopolítica persa acredita em derrota fácil.
Convém dizer, antes que os rótulos comecem a circular, que não se trata aqui de romantizar o regime iraniano — muito menos seu projeto nuclear. O governo dos aiatolás é autoritário, teocrático e opressor. E a ideia de um Irã armado com ogivas atômicas não é exatamente animadora. Mas isso não pode servir de salvo-conduto para que Israel transforme a região em campo de testes de sua superioridade bélica. Agora, com bombardeiros americanos cruzando o céu persa, o roteiro se aproxima perigosamente de um novo capítulo: o da guerra aberta entre Estados — com arsenal pesado, retórica inflamada e imprevisibilidade total.
Trump segue prometendo “resolver tudo em 24 horas”, como se o Oriente Médio fosse reunião de condomínio mal conduzida. Ironia das ironias: foi ele quem, em seu primeiro mandato, rasgou o acordo nuclear com o Irã, abandonou qualquer diálogo regional e terceirizou a diplomacia aos aliados mais radicais. O resultado salta aos olhos: um Oriente Médio ainda mais instável, um Irã mais agressivo e um Israel sem freios. Parabéns aos envolvidos.
E o Brasil? Diferentemente do que muitos previram, Lula não se omitiu. Condenou duramente a ofensiva israelense em Gaza — em termos que irritaram Tel Aviv e fizeram diplomatas americanos torcer o nariz — e rejeitou publicamente o ataque a Teerã, denunciando a escalada militar como temerária e irresponsável. Em meio a um mundo em chamas, Lula insiste que diplomacia ainda existe — embora poucos pareçam dispostos a ouvi?la.
Enquanto isso, o planeta gira (ou se desorienta). A ONU observa, impotente. A Europa vacila. A imprensa corre atrás das explosões. E os civis, como sempre, cavam sepulturas. Trump age como se ainda estrelasse um reality show: drama garante audiência; paz, não. Resta?nos assistir ao espetáculo, cada vez mais conscientes de que a cortina não cairá — só a fumaça.
O século XXI confirma que, se a história às vezes se repete como farsa, em outras se repete como míssil. E Trump, entre bravatas, nos lembra de que a paz segue sendo uma ideia radical demais para a realpolitik do mundo.
Filinto Branco – colunista político
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